Do encontro profundo e transformador com o Evangelho do Reino surge a solidariedade cristã como seu desdobramento ético.
Irmã Teresinha Mendes atua na Bahia com projetos sociais para crianças interpelada pelo rosto de Cristo naquele que sofre, exemplo de solidariedade cristã. (Reprodução/ Ajuda à Igreja que Sofre)
Por Felipe Magalhães Francisco*
A fragmentação cultural, própria de nossos tempos pós-modernos, traz um elemento importante e que deve ser valorizado, em nossas análises e tentativas de compreender o tempo presente. Trata-se da busca pelo reconhecimento da própria identidade: há uma tentativa crescente de afirmação dos lugares que os sujeitos ocupam diante de si mesmos e, em consequência disso, diante da sociedade em geral. Os feminismos, por exemplo, têm um grande papel nessa questão e nos ajudam a compreender que estamos num caminho que não tem mais volta, felizmente: as mulheres não mais aceitam nem aceitarão um lugar inferior, em qualquer nível de relações sociais e, por isso, têm buscado a construção de uma sociedade mais igualitária, que valorize a diversidade e que rompa com a estrutura nociva que é o patriarcalismo.
O mesmo pode ser dito dos movimentos de emancipação da negritude, que lutam cotidianamente para dissolver os elementos escravocratas tão marcantes em nossa sociedade brasileira. O racismo, marca encrustada em nossa história passada e presente, já não é e não deve ser legitimamente aceito como coisa natural em um corpo social. Para além dessas lutas contra o racismo e contra a desigualdade racial sistêmica de nosso país, por exemplo, os movimentos negros têm feito um bonito e importante trabalho de valorizar o orgulho da riqueza cultural negra, bem como de apropriação de uma consciência de que é preciso viver em constante resistência aos arbítrios e desigualdades. Também o movimento LGBTQI+, na mesma esteira de reafirmação de uma identidade diversa e plural, tem produzido constante chamamento à reflexão sobre a liberdade dos afetos, que extrapola o etiquetado tradicionalmente como norma de amor e relação.
Esse é um caminho que não tem mais volta! Mesmo que o reacionarismo tente minar tais caminhos de evolução social, as pessoas estão cada vez mais conscientes de si e decididas a não aceitarem imposição de um tipo de vida que não corresponda àquilo que elas percebem como propício à realização do ser pessoa. Resistência às ameaças e tentativa de avanço são duas características que marcam as pessoas e grupos que vão tomando mais consciência do lugar a que são chamados a ocupar, socialmente.
Mas, o que tudo isso tem a ver, afinal, com o tema da solidariedade cristã, tema deste nosso Dom Especial?
Essa nova realidade sociocultural é uma interpelação constante e fundamental ao cristianismo. Se a religião cristã quer estar atenta aos sinais dos tempos ela precisa, necessariamente, dialogar com esse cenário cultural que é realidade dada. O cristianismo deve superar as tentações de se manter numa postura de defesa, ante essa novidade dos tempos, e se colocar no lugar da escuta atenta e, em decorrência dessa escuta, em diálogo acolhedor. Há sementes do Evangelho presentes nesse contexto sociocultural que devemos cuidar para que germinem e prosperem. Para isso, o elementar da vida cristã, que é a vida e missão de Jesus Cristo, deve estar vivo no horizonte do cristianismo, pois essa deve ser a luz que ilumina nosso olhar sobre a realidade.
Um olhar e uma ação solidários para com todas essas lutas são deveres que se impõem, evangelicamente, aos cristãos e cristãs, porque tratam-se de lutas que visam humanizar nossa humanidade. Recorrendo, pois, aos fundamentos da experiência cristã, que estão lançados em Jesus Cristo, os artigos que compõem nosso Dom Especial visam à chamada à solidariedade como questão ética que irrompe do encontro profundo e transformador com o Evangelho do Reino.
Nessa perspectiva, convidamos os leitores e leitoras a se debruçarem sobre os três textos que nossos colaboradores aqui propõem. O primeiro deles, A solidariedade como testemunho do seguimento de Jesus, de Rodrigo Ferreira da Costa, que nos ajuda a discernir a solidariedade como postura eminentemente ética dos cristãos e cristãs. Em seguida, temos o artigo de Daniel Couto, Solidariedade e Justiça: o mandamento do Cristo, que nos remonta ao anúncio fundamental da pregação de Jesus, o Reino de Deus, que é um convite permanente à solidariedade, como ação visível da compaixão. Por fim, propõe um olhar sobre o que embasa a celebração do culto cristão, Danilo César, no artigo Da liturgia celebrada ao imperativo de uma ética solidária, no qual nos relembra os fundamentos da participação na vida do Senhor, pela liturgia, como princípio fundante da solidariedade.
Boa leitura!
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas 'Imprevisto' (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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