segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Mulheres e a submissão aos maridos no Novo Testamento


A letra escrita da Bíblia não é, em si, a Palavra de Deus. Essa Palavra de Deus é a mensagem contida nos textos bíblicos. Há diferença!


Usar texto bíblico para defender subserviência da mulher ao seu marido é injustificável. Vítima de violência deve denunciar, não apenas orar.
Usar texto bíblico para defender subserviência da mulher ao seu marido é injustificável. Vítima de violência deve denunciar, não apenas orar. (Sydney Sims/ Unsplash)
Por Felipe Magalhães Francisco*
De partida, é preciso reafirmar meu lugar: sou homem. É importante saber o lugar da fala, pois esse lugar carrega uma série de condicionamentos históricos, sociais, culturais... Esse texto quer falar a respeito das relações de gênero, portanto, pretende-se pró-feminista. O debruçamento sobre os textos do chamado corpus paulinum, nas últimas semanas, relembrou-me da atual ministra das Mulheres e Direitos Humanos, a Damares. A confessionalidade da fé da ministra é explícita: cristã, evangélica.
A laicidade do Estado é a garantia de que os cidadãos professem sua fé como direito. Não é nenhum problema que pessoas religiosas ocupem cargos públicos. O desvio, porém, é quando há o uso dos cargos públicos com apropriação religiosa, que é o que estava sendo corriqueiro nas falas da ministra, que agora resolveu ficar mais quieta. Sobre essas falas, já havíamos nos dedicado muitas vezes neste espaço. Uma delas, porém, havia sido relacionada ao papel submisso que as mulheres devem assumir perante seus maridos. Uma referência explícita a textos bíblicos.
Se a teologia cristã conseguiu avançar nos estudos bíblicos, fugindo da tentação literalista, isto é, fundamentalista, deve-se ao protestantismo. Foi a teologia protestante que, na esteira das ciências modernas, deu passos significativos para uma frutuosa exegese bíblica. É uma pena que, séculos depois, o movimento evangélico, em larga medida, tenha se distanciado da perspectiva teológica protestante. O mesmo se diga a respeito de movimentos católicos de cunho mais carismático, que vão na mesma linha da interpretação literal dos textos bíblicos.
A Bíblia é livro Sagrado para cristãos e cristãs! Isso não significa, contudo, que o que essa biblioteca contém, sejam escritos que querem falar de forma absoluta. Isso porque esses textos são frutos de contextos muito específicos. A letra escrita não é, em si, a Palavra de Deus. Essa Palavra de Deus é a mensagem contida nos textos bíblicos. Há diferença! Para chegar à Palavra de Deus, é preciso adentrar no mundo do texto, extraindo dele as significações para a fé, levando-se em conta os elementos literários que esses textos contêm.
Pois bem, passemos à questão da submissão das mulheres aos maridos. As cartas aos Colossenses e aos Efésios trazem aquilo que convencionamos chamar de “códigos domésticos”. Esses códigos abordam as relações sociais, a partir das categorias que as pessoas ocupam socialmente. Não é uma novidade bíblica: esses códigos eram comuns na cultura helenística e na judaica-helenística. Os códigos domésticos cristãos, presentes nessas duas cartas, inspiram-se na tradição judaica, patriarcal. No que diz respeito às mulheres, a palavra submissão quase que se torna termo técnico, pois aparece também em códigos domésticos cristãos de outros escritos, do século primeiro de nossa era.
Sobre as relações filhos e pais, escravos e senhores, o verbo não é o mesmo empregado para as mulheres, pois se fala em obediência. Ora, isso dá o que pensar! Não há como florear o uso da palavra técnica, para suavizar o texto bíblico. No entanto, não se deve cair no risco de considerar a submissão da mulher como sendo no sentido de sua inferioridade em relação ao homem, pois “não há judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um, em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Aqui, nós temos um paradoxo: o contexto patriarcal que dá o pano de fundo para o pensamento dos autores bíblicos em relação à questão da igualdade fundamental de todas as categorias sociais, em Cristo.
Os códigos domésticos cristãos trazem novidades: nos códigos domésticos do judaísmo helenístico, não há a contrapartida do papel do marido, em relação à mulher. Nos cristãos, sim: “maridos, amai suas esposas [...] como amam seu próprio corpo” (Ef 5,25.28). E mais: as mulheres são chamadas a serem submissas aos seus maridos, como convém ao Senhor. Essa formulação, juntamente com a exortação aos maridos de que amem suas mulheres, deve ser a garantia de que a relação dos maridos em relação às suas respectivas esposas não seja despótica. A Carta aos Efésios ainda vai além da Carta aos Colossenses: “Sede submissos uns aos outros, no temor de Cristo” (Ef 5,21), é a exortação que abre o código doméstico.
Fazendo uma leitura desses textos, levando-se em conta a consciência possível da época, percebemos que a leitura cristã das relações domésticas representa um avanço, em relação ao judaísmo. Contudo, não representa uma leitura ideal das relações entre homens e mulheres: esses textos, ainda que avancem, são filhos dos seus próprios tempos e contextos. Portanto, para nós, hoje, em nossa consciência possível, a palavra submissão, para uso da relação mulheres e maridos, não faz jus às relações equitativas que estamos tentando viver, em nossa sociedade, a partir das questões de gênero, levantadas pelos feminismos. Disso tudo, o que é exortação imperecível, para cristãos e cristãs e para todos os homens e mulheres de boa vontade, é que vivam as relações sociais, como convém ao Senhor.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.

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