quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Um sínodo que incomoda a poucos e confirma a muitos


Uma análise teológica do 'Instrumentum laboris', em preparação ao Sínodo Especial para a Região Pan-Amazônica.


Desde o seu nascimento, o cristianismo tocou e se deixou tocar por outras culturas. Na foto, indígena em Igreja na Amazônia.
Desde o seu nascimento, o cristianismo tocou e se deixou tocar por outras culturas. Na foto, indígena em Igreja na Amazônia. (Vatican News)
Por Adelson Araújo dos Santos SJ*
Às vésperas do início de um dos eventos mais importantes da Igreja Católica para este ano – o Sínodo Especial sobre a Amazônia – algumas poucas vozes têm levantado dúvidas sobre a catolicidade deste sínodo, uma vez que o seu instrumento de trabalho estaria repleto de erros teológicos e de heresias. E há também quem esteja acusando o papa Francisco de promover um evento político para atingir determinados governos.
Com o presente artigo, pretendemos demonstrar que, ao contrário, o documento preparatório ao sínodo, traduz uma clara e límpida expressão da fé e da doutrina cristã, teologicamente fundamentadas na Sagrada Escritura e no magistério dos papas, que perpassa todo o conteúdo desenvolvido pelos redatores pré-sinodais. Ao mesmo tempo, buscaremos mostrar que a convocação deste sínodo não é fruto de um gesto isolado do atual papa, mas se harmoniza coerentemente com a posição que a Igreja historicamente tem assumido em favor da Amazônia, dos seus povos originários, da criação e da vida em geral e do diálogo intercultural com as diferentes realidades onde a evangelização tem chegado, como passaremos a analisar.
A ação criadora de Deus e o papel do ser humano, segundo o Instrumentum laboris
Dizia o cardeal Tomás Spidlík1 que os antigos gregos descobriram a Deus contemplando a beleza do cosmos, de modo que pelas criaturas se chegasse ao Criador delas, sem que com isso se afirme que as criaturas são Deus. Mas, como ensina a teologia da criação, uma vez que cada uma dessas criaturas existe pela bondade e pela beleza de quem as criou, elas expressam à sua maneira algo do seu Autor. Assim que, o nosso planeta e todos os seus habitantes são expressão viva da obra criadora de Deus e do amor que o Criador tem por cada ser criado, sem que haja confusão ou fusão entre um e outro.
Pe. Adelson Araújo dos Santos SJPe. Adelson Araújo dos Santos SJ
Ora, não é outra a interpretação teológica que o Instrumentum laboris faz quando afirma que “ao contemplar a formosura do território amazônico, descobrimos a obra mestra da criação do Deus da Vida. Seus intermináveis horizontes de beleza sem limites são um cântico, um hino ao Criador”2, para em seguida defender que a Igreja na Amazônia seja uma “Igreja com uma clara opção pelos (e com os) pobres, e pelo cuidado da criação”3 , levando inclusive a uma forma de “conversão ecológica”, como chama o papa Francisco4, o que implica no “reconhecimento da cumplicidade pessoal e social nas estruturas de pecado, desmascarando as ideologias que justificam um estilo de vida que agride a criação” 5 .

Seria, portanto, total distorção dos fatos querer enxergar alguma forma de panteísmo nestas afirmações acima recordadas. Quem assim o fizesse estaria se colocando em frontal desobediência para com a sã doutrina e o Magistério da Igreja, dos quais o atual vigário de Cristo é exímio continuador. De fato, durante o seu pontificado, também Bento XVI não deixou de alertar o mundo e a Igreja para a importância do cuidado da criação, não por querer divinizá-la, mas por saber que desse cuidado depende o próprio desenvolvimento e sobrevivência da principal das criaturas, o ser humano. Com efeito, para o papa teólogo alemão, “a terra é um dom precioso do Criador, que delineou os ordenamentos intrínsecos, indicando-nos assim os sinais orientativos que devemos respeitar como administradores da sua criação. É precisamente a partir desta consciência, que a Igreja considera as questões ligadas ao meio ambiente e à sua salvaguarda intimamente vinculadas ao tema do desenvolvimento humano integral”. 
Assim, em total sintonia com o texto que seria posteriormente escrito em preparação ao Sínodo sobre a Amazônia, ensina o magistério de Bento XVI que “a Igreja não apenas está comprometida em promover a defesa da terra, da água e do ar, oferecidas pelo Criador a todos, mas sobretudo compromete-se em proteger o homem contra a destruição de si mesmo”, para concluir que "quando a ‘ecologia humana’ é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ‘ecologia ambiental’"6 .
É inequívoca, portanto, a fundamentação teológica do Instrumentum laboris quando se posiciona a favor da defesa da criação, vendo nas criaturas a presença Daquele que as criou, a começar pelo próprio ser humano, cujo coração continua sendo o centro do cosmos e da história, uma vez que somente ele foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27). De fato, o documento7 recorre várias vezes à Sagrada Escritura para sustentar que a criação se apresenta como manifestação da vida, sustento, possibilidade e limite (cf. Gn 1, 1-2.4a), dentro da qual o ser humano é convidado a relacionar-se com as coisas criadas, do mesmo modo como Deus o faz, cultivando e guardando o jardim (cf. Gn 2, 4b-25). Esta relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza, recorda o papa Francisco8, supõe uma atitude de humildade por parte do homem e da mulher, ao tomarem consciência de que não são donos absolutos da criação, mas meros administradores (cf. Gn 3, 3). São palavras que, longe de serem heréticas, nos remetem naturalmente ao ensinamento dos Padres da Igreja9, para os quais a criação é fruto da vontade divina, sendo, portanto, uma força operativa, uma energia, cabendo ao ser humano colaborar com essa força, agindo sempre em sinergia com o Criador.
Voltando ao magistério do papa Bento XVI, ele confirma tudo o que acima se disse, ao afirmar que “a criação, matéria estruturada de modo inteligente por Deus, está confiada à responsabilidade do homem, que é capaz de a interpretar e de voltar a modelá-la ativamente, sem se considerar seu senhor absoluto. De fato, o homem é chamado a exercer um governo responsável para conservar a criação, fazê-la frutificar e cultivá-la, encontrando os recursos necessários para uma existência digna de todos”10
Fiel ao Magistério da Igreja, o Instrumentum laboris retoma esse chamado à responsabilidade do ser humano para com as criaturas divinas, quando ao explicar a noção de “bem viver”, chama a atenção para a centralidade do caráter relacional-transcendente dos seres humanos e da criação, a partir da sua própria maneira de se organizar, que começa pela família e a comunidade, “abrangendo uma utilização responsável de todos os bens da criação”11
Isso em nada diminui ou extingue a personalidade individual e a liberdade humana, mas apenas ressalta que “a vida é um caminho comunitário onde as tarefas e as responsabilidades se dividem e se compartilham em função do bem comum. Não há espaço para a ideia de indivíduo separado da comunidade ou de seu território”12. Enfim, encontrar a Deus na natureza é perceber o mundo como criação, onde o homem contempla os traços de Deus. A criação se torna, assim, o lugar da sua busca de Deus e do seu encontro com Deus, que o conduz a seguir sua rota de peregrino, em atitude de respeito para com o Autor e toda a sua obra.
Quanto ao fato de o documento de trabalho do sínodo acolher certas expressões da cosmovisão e espiritualidade indígena, que alguns poucos consideram apenas superstições pagãs, mais uma vez não faltam fundamentos doutrinários e históricos sólidos para justificar tal inclusão. Com efeito, quem tem um mínimo de conhecimento de história da Igreja sabe que foi conseguindo expressar-se, ao longo dos séculos, em linguagens diversas, que o cristianismo teve força para fazer-se “tudo a todos” (1Co 9, 22). A inculturação do Evangelho foi, assim, uma realidade desde o início da evangelização, enquanto “íntima transformação dos autênticos valores culturais por meio da sua integração no cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas”13
Portanto, desde o seu nascimento, o cristianismo tocou e se deixou tocar por outras culturas, colhendo dessas elementos e características, como recorda o cardeal Spidlík, ao ensinar que os antigos gregos contribuíram para que o homem fosse visto como inseparável do universo e da sua ordem, enquanto os eslavos, por sua vez, “conseguiram dar um significado cristão às velhas crenças populares sobre a Terra úmida, mãe terna de seus filhos humanos, que devem ter por ela afeto e amor”14.
Presente como fato histórico e não apenas conceitual desde as comunidades cristãs primitivas, a inculturação se mostrou, assim, uma forma inteligente e experimentada de inserção da mensagem cristã em diversas áreas do globo terrestre, entendida em sentido sócio antropológico como processo de diálogo com o universo simbólico dos diferentes povos com os quais o Evangelho entrou em contato15. Ora, se assim foi desde o início, sendo isso o que permitiu a expansão e solidificação do cristianismo nesses mais de dois mil anos de existência, qual o motivo de julgarmos e condenarmos os missionários que na Amazônia buscam conhecer, dialogar e integrar toda a riqueza e sabedoria milenar da religiosidade dos povos originários que ali habitam há milhares de anos?
De fato, citando a Redemptoris missio (n. 52), são João Paulo II, quando como papa visitou o Brasil, falando a lideranças de 37 nações indígenas, afirmou explicitamente que essa é a missão da Igreja e o ideal de todos os missionários: “Inserir a Igreja nas culturas dos povos, encarnar o Evangelho na vida e, ao mesmo tempo, introduzir a todos com as suas culturas, na própria comunidade da Igreja, transmitindo-lhes sua verdade, assumindo, sem comprometer de modo nenhum a especificidade e a integridade da fé cristã, o que de bom existe nessas culturas, e renovando-as a partir de dentro”16. Impressiona a semelhança de abertura existente nas palavras do santo papa João Paulo II e do atual sucessor de Pedro, para quem igualmente “cada cultura e cada cosmovisão que recebe o Evangelho enriquece a Igreja com a visão de uma nova faceta do rosto de Cristo”. Por isso que, ao se encontrar com os povos indígenas da Pan-Amazônia em Puerto Maldonado, o papa Francisco17 reafirmou que “a Igreja não é alheia aos vossos problemas e à vossa vida, não quer ser estranha ao vosso modo de viver e de vos organizardes. Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas”.
Como vemos, diferentemente daqueles que tratam de forma preconceituosa a cultura indígena, vendo-a apenas como mera “superstição pagã”, tanto João Paulo II como Francisco são sábios o suficiente para reconhecer a riqueza que o contato e o diálogo com outros povos e culturas não-cristãs, como são aquelas dos povos indígenas da Amazônia, não só não põe em risco a nossa identidade, como pode até mesmo fortalecê-la, ao nos recordar valores e tesouros espirituais presentes, mas muitas vezes esquecidos, dentro da nossa própria fé e experiência de Deus18. Portanto, se é verdade tudo o que os papas acima citados disseram, como de fato o é, agora dissonantes com a voz da Igreja são aqueles incapazes de acolher, dialogar e respeitar as cosmovisões e tradições religiosas dos povos indígenas pan-amazônicos, como bem faz o Instrumentum laboris.
A continuidade deste texto será publicada nesta quinta-feira (25).
Em outubro, o Dom Total vai trazer cobertura exclusiva do Sínodo para a Amazônia, com artigos, análises, reportagens e entrevistas sobre religião, meio ambiente, direito ambiental. Confira no www.domtotal.com.
 
Confira também a programação da 4ª Semana de Estudos Amazônicos.

NOTAS
1 Spidlík, T. Ignacio de Loyola y la espiritualidad orientalinMensajeroSal Terrae, Bilbao: Santander. 2008. p. 23.
2Instrumentum laboris, n. 22.
3Instrumentum laboris, n. 109.
4 Cf. Papa Francisco, Encíclica Laudato sí, n. 216-221.
5Instrumentum laboris, n. 101.
6 Papa Bento XVI, A criação como dom do Criador, Audiência Geral, Quarta-feira, 26 de agosto de 2009.
7 Cf. Instrumentum laboris, n. 55.
8 Papa Francisco, Encíclica Laudato sí, n. 67.
9 Cf. Spidlík, T. Ignacio de Loyola …, 29.
10 Papa Bento XVI, A criação como dom do Criador...
11Instrumentum laboris, n. 13.
12Instrumentum laboris, n. 24.
13 Encíclica Redemptoris missio, V, 52.
14 T. Spidlík, I grandi mistici russi, Roma 1977, 345 ss.
15 Cf. L. Padovese, Introduzione alla teologia patristica, Piemme, Casale Monferrato 1992, 175-177.
16 São João Paulo II, Discurso do Santo Padre no encontro com os representantes das comunidades indígenas do Brasil, Cuiabá, 16 de outubro de 1991.
17 Papa Francisco, Encontro com os povos da Amazônia. Discurso do Santo Padre, Puerto Maldonado - Coliseu Madre de Dios, Sexta-feira, 19 de janeiro de 2018.
18 A respeito da contribuição da sabedoria espiritual dos povos indígenas para espiritualidade cristã, leia-se: A. Araújo dos Santos, “Spiritualità indigena dell’amazzonia e cura della 'casa comune'” in Civiltà Cattolica, Quaderno 4057, Anno 2019, Volume III, 13 – 22.
*P. Adelson Araújo dos Santos SJ é nascido em Manaus, jesuíta, doutor em Teologia Espiritual, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e um dos especialistas convidados a participar do Sínodo da Amazônia.

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