quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Com Newman, a Igreja ganha seu 'santo para os tempos modernos'

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São John Henry Newman é amplamente visto como o arquiteto da Igreja moderna


Detalhe de uma impressão de carbono de John Newman por Herbert Rose Barraud, 1887, publicado em 1888
Detalhe de uma impressão de carbono de John Newman por Herbert Rose Barraud, 1887, publicado em 1888 (National Portrait Gallery, Londres)
Por Jonathan Luxmoore*

Neste domingo (13) vivemos o ápice de uma notável odisseia religiosa que se estende por mais de dois séculos. O cardeal convertido, John Henry Newman, foi canonizado pelo papa Francisco.
Na Grã-Bretanha, sua terra natal, Newman (1801-1890) é o primeiro santo confessor, ou não mártir, em 600 anos, sendo honrado por realizações em vida e não após a morte. Também será um momento de coroação para os devotos mundiais de um homem amplamente visto como artífice da Igreja moderna.
"É claro que Newman lidou com questões do ponto de vista do século 19, mas suas opiniões sobre o papel dos leigos e o desenvolvimento da doutrina da Igreja ainda são de considerável relevância", disse o padre jesuíta John W. O'Malley, professor de teologia na Universidade de Georgetown. "Embora sua canonização não signifique que estava certo em todas as áreas, é certamente uma devesa firme de Newman e uma afirmação clara de que suas ideias não eram apenas ortodoxas, mas também significativas para a atualidade".
Quando Newman foi beatificado em Birmingham, Inglaterra, em 19 de setembro de 2010, o papa Bento XVI elogiou sua "inteligência aguçada e escrita prolífica", que continuaram "a inspirar e iluminar muitos em todo o mundo".
Com certeza, na Universidade de Oxford continua influindo o pensamento de um dos filósofos e teólogos mais conhecidos do mundo cristão. Ele também é considerado o autor sobre o qual se tem mais estudos de doutorado nas universidades pontifícias de Roma do que qualquer outra figura moderna.
Isso se deve em parte à sua vasta produção de poesia, hinos, reflexões e romances, bem como de obras clássicas como suas Meditações e devoçõesSermões simples e paroquiais, e à autobiografia Apologia pro vita sua, ainda em processo de publicação.
A Oxford University Press levou cinco décadas para tomar nota e publicar 32 grandes volumes de cartas de Newman, enquanto o primeiro de 250 mil folhas extras de correspondência, notas e fotografias foram publicadas neste verão, sob um programa de digitalização interativo coorganizado pelo Instituto Nacional de Pittsburgh para Estudos de Newman.
Todavia, Newman também era uma figura profundamente pastoral, destacam os especialistas, cuja compreensão dos dilemas cristãos modernos ainda ensinam lições vitais.
"Ele não era apenas um filósofo nobre – também era um sacerdote e profeta, que previa as dificuldades que o cristianismo enfrentaria em um mundo secular vindouro", disse o padre Ignatius Harrison, reitor do Oratório de São Felipe Néri, em Birmingham, fundado pelo futuro santo em 1848. "Ele foi amado em sua vida não porque todos haviam lido suas obras intelectuais, pelas quais mais tarde se tornou famoso, mas por causa de sua bondade pastoral, sobretudo com os pobres, desempregados e doentes. Tudo isso fica claro com sua canonização".
Autoridade de longa data
Filho de um banqueiro de Londres, Newman foi criado na Igreja Anglicana da Inglaterra, passando por uma experiência de conversão, aos 15 anos, para uma fé no estilo calvinista.
Ele se formou e lecionou na Universidade de Oxford, servindo como vigário de sua igreja St. Mary the Virgin de 1828 a 1843, de onde, com John Keble, Edmund Pusey e outros, liderou o Movimento Oxford, que procurava livrar a Igreja da Inglaterra da interferência estatal e reviver suas crenças e rituais pré-reforma.
Em 1845, tendo concluído sua formação anglicana, e no meio caminho, entre protestantismo e catolicismo romano, Newman ingressou na Igreja Católica, fundando o Oratório e ajudando a estabelecer uma universidade católica na Irlanda três anos depois.
Tendo influenciado o avivamento do catolicismo na Inglaterra após três séculos de repressão e restrição, foi nomeado cardeal pelo papa Leão XIII em 1879. Acredita-se que seu pensamento sobre a história da Igreja, a eclesiologia, os direitos de consciência e o papel dos leigos antecipou o Concílio Vaticano II de 1962-1965.
O'Malley acha que as deduções de Newman eram extremamente necessárias pela Igreja Católica no século 19, quando novos estudos históricos da Bíblia e da história cristã arriscavam comprometer suas reivindicações sagradas.
Paradoxalmente, porém, eles tiveram um efeito maior no século 20, quando questões de mudança e continuidade ocuparam o centro das atenções, especialmente entre católicos de língua inglesa.
Controvérsias pelas intenções de Newman continuaram após sua morte por pneumonia, aos 89 anos, em 11 de agosto de 1890. Alegações de que era homossexual também surgiram mais recentemente, principalmente por causa de seu relacionamento com um colega oratoriano, Ambrose St. John, em cuja sepultura pediu para ser enterrado.
Isso tem sido disseminado por estudiosos como o principal biógrafo inglês de Newman, Ian Ker, que insiste que Newman foi chamado ao celibato e não deixou pistas escritas de qualquer inclinação gay. Newman correspondeu-se afetuosamente ao longo de sua vida com homens e mulheres, aponta Ker, embora não fosse incomum que amigos íntimos desejassem se enterrar juntos.
Ele tinha "muitos críticos, para não dizer inimigos", observou Ker em sua biografia. No entanto, nem mesmo os observadores mais casuais leem algum significado além, "trata-se de um ato de amizade amorosa e, de fato, de humildade, feito para o século 20 ".
"As grandes realizações de Newman na literatura, na teologia, na filosofia e na educação permanecem firmes – assim como seu importante papel histórico na liderança do Movimento Oxford e na definição posterior da relação entre fé e razão", disse Ker em entrevista. "Ele viu como, em uma sociedade pluralista, que não era mais homogênea em termos de religião, a Igreja também tinha que ajustar seus ensinamentos para não se tornar velha e falsa. Mas ele também trouxe à Igreja uma profunda compreensão da importância da vida pessoal, das conversões, dando-lhes uma estatura que só pode crescer nos próximos anos".
A defesa de Newman da consciência pessoal – descrita em seu Ensaio de uma gramática de consentimento, de 1870, como "um senso moral e um senso de dever; um julgamento da razão e um ditado magisterial" – é reconhecida no Catecismo de 1992 da Igreja Católica, junto com seus escritos sobre fé, bem-aventurança cristã e o sentido do sagrado.
Também foi usado em um contexto de direitos humanos e foi citado pelo grupo de estudantes de Sophie e Hans Scholl, da Rosa Branca, que se opunham bravamente ao regime nazista em Munique durante a guerra.
Enquanto isso, sua defesa dos direitos católicos, apresentada em 1875 em uma carta dirigida a sua graça, o duque de Norfolk, por ocasião da recente expostulação de Gladstone, já há muito tempo entrava na corrente principal católica. O mesmo ocorre com seus pensamentos sobre educação, liberdade versus vontade própria, necessidade de dogma como contraponto à ideologia liberal e compatibilidade de ciência e teologia como meio de entender o mundo.
Quando os teólogos franceses Henri de Lubac, Yves Congar e Jean Danielou lançaram uma "nova teologia", ou movimento em meados do século 20, para afastar o embrulho do neo-escolasticismo seco e antimoderno sobre a teologia católica. Eles aplicaram o apelo de Newman às Escrituras e às tradições da Igreja primitiva nos ensinamentos baseados em condições reais e concretas.
"Alguns santos são canonizados porque são modelos de devoção cristã, mas realmente não têm nenhum impacto significativo na própria Igreja. Mas Newman deve ser visto, pelo contrário, como o grande teólogo do catolicismo pós-Vaticano II" – disse Ian Ker, biógrafo de John Henry Newman.
Grande santo teólogo
O apelo de Newman se estendeu para além da Igreja Católica. Os teólogos ortodoxos apreciaram seu profundo estudo dos padres gregos, como Santo Atanásio, e detectaram uma influência oriental em sua compreensão da tradição patrística, da teologia trinitária e da soteriologia.
Pensadores da Comunhão Anglicana à qual Newman pertenceu, embora perturbados por sua mudança para a Igreja romana, também se basearam fortemente em seus escritos espirituais, bem como em sua defesa da conversão e do desenvolvimento doutrinário.
É, no entanto, o papel de Newman como precursor do Vaticano II é frequentemente citado como prova de sua importância contínua.
Em 1963, quando o Concílio estava no auge, o papa Paulo VI descreveu a jornada espiritual de Newman como "a mais trabalhosa, mas também a maior, mais significativa e mais conclusiva que o pensamento humano já viajou... durante a era moderna, para chegar na plenitude da sabedoria e da paz".
Monsenhor Roderick Strange, professor de teologia da Universidade Católica de Santa Maria, em Londres, que editou as cartas de Newman, acha que muitas de suas preocupações vieram à tona na época, incluindo "sua defesa da Igreja como comunhão, do lugar de direito dos leigos, sua preocupação com a unidade e seu reconhecimento do lugar da Igreja no mundo, respondendo às necessidades e desafios que nela se encontram".
Todas essas questões tiveram seu lugar no trabalho do conselho, escreve Strange em um novo livro, tornando a voz de Newman "profética".
Não pretendia ser um santo
Embora dezenas de mártires da Reforma Católica tenham sido canonizados nas últimas décadas, Newman será o primeiro santo da Grã-Bretanha a viver nos tempos modernos.
Sua canonização foi aprovada pelo papa Francisco em fevereiro, após o reconhecimento de dois milagres por sua intercessão: a cura do diácono Jack Sullivan de Marshfield, Massachusetts, de uma condição espinhal grave em 2001, e a cura de Melissa Villalobos, de Chicago, de um hematoma subcoriônico em 2013.
Embora muitos o tenham visto como santo durante sua vida, as orações por sua canonização foram autorizadas pela Igreja apenas na década de 1940, e sua causa foi concluída pela Arquidiocese de Birmingham em 1986, após duas décadas de trabalho.
Com muito material novo sendo disponibilizado no banco de dados on-line coadministrado pelo Instituto Nacional de Estudos Newman, incluindo as intenções de oração escritas à mão de Newman, rascunhos de cartas e cadernos pessoais, alguns devotos esperam que a atenção agora também se concentre em seu papel sacerdotal mais simples e pastoral, além do mundo das elevadas atividades teológicas e filosóficas.
Quando Bento XVI o beatificou nove anos atrás, o papa enfatizou que também queria ir além do "legado intelectual" de Newman e refletir sobre "o calor e a humanidade subjacentes à sua apreciação do ministério pastoral".
Esse foi o foco de uma declaração de setembro do cardeal inglês Vincent Nichols, que elogiou a "exploração da fé, a profundidade de coragem pessoal, a clareza intelectual e a sensibilidade cultural" de Newman, mas também lembrou como seu ministério entre os pobres havia fornecido "um sinal permanente de compaixão pastoral na Igreja".
Um santuário para o santo está sendo restaurado no Oratório de Birmingham, onde viveu seus anos, enquanto um museu de seus objetos pessoais também será aberto neste outono.
Harrison diz que pedidos de relíquias e lembranças de Newman estão chegando de todo o mundo, à medida que mais católicos oram a ele e buscam um vínculo pessoal. "Newman foi muitas vezes incompreendido durante sua vida, mas acho que chegou a hora dele emergir como um santo importante dos tempos modernos", disse Harrison à NCR. "Mas ele era principalmente um padre e professor, envolvido em uma busca vitalícia por santidade. Isso proporcionará um incentivo aos colegas pastores que não são necessariamente dotados intelectualmente, mas cuidam das almas das pessoas comuns em suas paróquias".
O novo banco de dados on-line incorporará material do Oratório de Birmingham que permaneceu oculto desde a morte de Newman, incluindo cartas para o futuro santo de figuras do século 19, como os primeiros-ministros britânicos Benjamin Disraeli e William Gladstone, e os cardeais Nicholas Wiseman e Henry Edward Manning, mas também de pessoas comuns que procuravam seu apoio na oração.
Tudo isso facilitará mais pesquisas sobre as realizações de Newman. Também parece certo que incentivamos pedidos para que seja declarado doutor da Igreja, colocando-o no mesmo nível de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, dos quais Ker acha potencialmente certo.
Enquanto Newman defendia o lugar da Igreja e da fé no mundo moderno com grande vigor intelectual e filosófico, ele estava longe de ser liberal, ressalta Ker, mas podia ser seco e polêmico.
Porém, Newman entendeu a complexidade e a vitalidade da mente humana e instintivamente procurou mover mentes e corações explorando o meio termo.
Por seu próprio relato, foi o ditado de Agostinho, "securus iudicat orbis terrarum" (o veredicto de todo o mundo é conclusivo), o que ajudou a motivar a escolha de Newman por Roma sobre o anglicano.
Mas, ao fazê-lo, ele também propôs "um caminho intermediário entre o catolicismo liberal e o papalismo ultramontano", diz Ker, e continuou a atribuir grande importância "à conversão e evangelização pessoal, ao conhecimento de Cristo através dos Evangelhos".
"Newman era um pensador complexo e sutil, que se recusava a ver questões em preto e branco e era radical e conservador em suas atitudes", disse Ker à NCR. "Ele teria apoiado os reformadores no Vaticano II, mas também teria previsto como eles mais tarde se dividiriam em facções moderadas e extremas. Embora certamente acreditasse na verdade objetiva, ele também viu como as pessoas viam as provas de maneira diferente, de uma forma que permanece relevante para a sociedade como os debates atuais sobre ateísmo, reducionismo científico e pós-modernismo".
Newman havia inscrito em sua lápide do cemitério do oratório o modesto slogan latino, "ex umbris et imaginibus in veritatem" (das sombras e das imagens à verdade), e insistia em uma carta que não "tendia a ser santo".
A Igreja Católica decidiu de outra maneira - uma notável reviravolta do destino, que foi famosa por Lord Rosebery, secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, que viajou a Birmingham para vê-lo exposto "como santo" em sua morte.
"Este foi o fim do jovem calvinista, o carisma de Oxford, o austero vigário de Santa Maria", registrou Rosebery. "Parecia que todo um ciclo de pensamento e vida estava concentrado nesse repouso... A luz gentil levou e guiou Newman a esse fim estranho, brilhante e incomparável".

Publicado originalmente por NCR.
*Jonathan Luxmoore cobre as notícias da Igreja de Oxford, Inglaterra e Varsóvia, Polônia. O Deus do Gulag é seu estudo de dois volumes sobre mártires da era comunista, publicado por Gracewing em 2016.

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