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O Espírito Santo não leva a uma espiritualidade etérea, mas encarnada na realidade
O texto bíblico está recheado de imagens como vento, fogo, água, pomba, dentre tantas outras para tratar do Espírito Santo, ressaltando a grande dificuldade de tratar do que não pode ser visto (Josh Applegate/ Unsplash)
Fabrício Veliq*
O estudo acerca do Espírito Santo, pneumatologia, é uma temática antiga na tradição cristã. Desde os primeiros séculos do cristianismo houve a preocupação de se falar a seu respeito, mostrando-o como pessoa da Trindade e, por isso mesmo, digno de ser glorificado e adorado com o Pai e o Filho. Essa formulação, embora hoje pareça trivial para todo cristão, demorou séculos até ser aceita e estabelecida como dogma. Para se ter uma ideia, somente em 381 (d.e.c), no concílio de Calcedônia, foi afirmada a divindade do Espírito, fruto da reflexão dos pais da Igreja e, principalmente, do trabalho de Basílio de Cesaréia.
O Espírito, dentre as pessoas da Trindade, é aquele sobre quem se tem maior problema em falar, sobretudo porque é difícil explicitar o que não é material. Por isso, o texto bíblico está recheado de imagens como vento, fogo, água, pomba, dentre tantas outras para tratar dele, ressaltando a grande dificuldade de tratar do que não pode ser visto.
Ao contrário do que muitos podem pensar, as Escrituras não narram a ação do Espírito meramente no interior humano. No Antigo Testamento, ela é descrita como a força de Deus que faz cumprir a vontade divina, que anuncia por meio dos profetas o seu desejo, ou ainda, no pós-exílio, como a responsável por dar vida a uma nação destruída. No Novo Testamento, por sua vez, ressalta-se o caráter pessoal do Espírito como aquele que chora, opera na vida de Jesus, consola e constrói a comunidade dos que creem, fazendo com que sejam um e testemunhem o Cristo.
Contrariamente à posição gnóstica de que se deve condenar e rejeitar o que é relativo à carne, devendo a pessoa focar nas questões espirituais e da alma, a posição cristã dirá que a ação do Espírito de Deus é percebida na totalidade da vida dos que têm um encontro com o Ressuscitado e que transborda para o mundo. Ela mostra que o Deus cristão se importa com a humanidade, a quem manifesta sua bondade e graça. Contudo, cresce atualmente a visão do Espírito mais próxima do gnosticismo que do cristianismo. É comum movimentos católicos, protestantes ou evangélicos cultivarem a ideia da ação do Espírito somente em seu aspecto individual e interior, como um promotor de santidade para garantir que se está bem com Deus.
Essa privatização da fé é percebida em diversas pessoas que buscam desenvolver uma espiritualidade que lhes faça bem, mesmo que não haja consequência ética. Também se vê naquelas que buscam ser consideradas santas diante de Deus e, assim, livrar-se de algum tipo de condenação eterna. Ou seja, em algumas experiências espirituais desse tipo, busca-se somente bem-estar interno ou religioso, um objeto de consumo a ser adquirido dentro da dinâmica capitalista.
A experiência do Espírito, no entanto, sempre gera ação efetiva na sociedade, buscando sua transformação, a exemplo de Jesus. Ele é quem ressuscitou Jesus dentre os mortos e guiou sua vida e obras, dando testemunho do amor de Deus pela humanidade. Desse modo, ser cheio desse Espírito significa ser revestido de poder testemunhar Jesus. Em outras palavras, é lutar pela mesma causa que Jesus lutou, voltando-se para os pobres, desprotegidos e marginalizados da sociedade a fim de lhes garantir o direito e a justiça; é buscar a transformação desse mundo, mostrando as nuances do Reino de Deus que há de vir.
Ser cheio do Espírito, portanto, não tem a ver com ascetismo que se recusa a tocar o que é mundano ou ter um fundo de investimento em santidade que permita sacá-lo quando se precisa. Muito pelo contrário, é se envolver com o mundo, importar-se com ele, lutar pela sua transformação, já que esse é o exemplo que vemos em Jesus.
Uma busca do Espírito que não se envolve com a realidade não passa de ideologia que visa certo tipo de superioridade cristã. Trata-se de algo que nada tem a ver com o Espírito gerador de vida e liberdade para todos, conforme anunciado e prometido por Jesus.
*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia (UFMG) E-mail: fveliq@gmail.com
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