Um assassinato monstruoso que transformou o bucólico parque de BH em 'antro de perdição'
"Jardim das Delícias", ponto de encontro de homossexuais no Parque Municipal de BH.
Por Marco Lacerda*
Em 1969, ano em que eu conquistara meu primeiro emprego como jornalista, no Diário de Minas de Belo Horizonte, fui escalado para cobrir um escândalo político mineiro que tinha sua origem na metade dos anos 1940. Desci até os arquivos do jornal, nos porões do edifício, para fazer uma pesquisa sobre o tema. Folheando as edições encadernadas de todos os exemplares do jornal, deparei-me com um exemplar do ano de 1946, que capturou minha atenção e curiosidade ao ponto de devorar, naquela tarde, tudo o que havia sobre o assunto nos arquivos do tradicional matutino – ingredientes dignos de um filme noir de terror.
Na manhã de 5 de dezembro de 1946, um grupo de alunas do tradicional Instituto de Educação, situado em frente ao parque, ao cortarem caminho por um atalho rumo ao colégio, deparam-se com um quadro assustador: um homem todo sujo e ensangüentado jazia morto em um dos locais mais ermos e escondidos do parque. Logo o local é cercado pela polícia e por curiosos.
A vítima chama-se Eduardo Delgado, engenheiro. Através de amigos e colegas de trabalho a polícia levantou a vida pregressa do rapaz e descobriu segredos bem escondidos. Diz o noticiário da época: “Apesar de sua aparência máscula, Delgado levava vida homossexual, frequentando assiduamente o parque, especialmente o local famoso nos meios "entendidos" como “o recanto das delícias”, cujos habitués mais notórios atendiam por codinomes como Jasmim, Trenzinho do Luar, Perfume da Madrugada, Dorian Gray, Veludo da Noite, Bunda de Cetim, Messalina, Pompom Grená, Bombonzinho e que tais”.
Taras, versões contraditórias, pessoas ilustres como suspeitas
Um homem ensanguentado é encontrado morto no Parque Municipal.
Cercado de mistérios e com todos os ingredientes que tornam um crime famoso – sangue, taras, versões contraditórias, pessoas ilustres como suspeitas – o episódio repercutiu além das Alterosas, tornando-se um dos pratos do dia da imprensa nacional, por longo período.
Apesar da enorme repercussão, uma vez que a família do morto, de Campinas, era muito bem relacionada, a polícia, nos primeiros dias, nada consegue, trabalhando com as hipóteses de crime passional, latrocínio e até crime comum. Para piorar as coisas, aconteceram diversas falhas técnicas, sendo as piores delas a não inspeção do local do crime pela polícia técnica e o misterioso desaparecimento das roupas ensanguentadas de Delgado, provocando grande impacto junto à população, que exigia um culpado de qualquer maneira, já que os boatos corriam soltos. Um dos comentários dava conta de que o ocorrido era, na verdade, um crime passional envolvendo um integrante da alta sociedade mineira.
Surge o primeiro e inesperado suspeito: Nicanor Pereira da Silva, filho da empregada de Delgado. Mesmo sofrendo violentos interrogatórios, ele nega a autoria do crime, não sabendo por que o envolveram naquilo. Sua passagem pela polícia foi tão barra pesada que, totalmente abalado, após ser libertado, corta a veia jugular com uma navalha, suicidando-se. A imprensa fica em polvorosa, mas nada é provado contra o rapaz e as investigações voltam à estaca zero.
A vingança de um marido traído?
O Parque Municipal em 1946, ano em que aconteceu o Crime do Parque.
Versões fantasiosas ganham força: vingança de um marido traído, tendo o crime acontecido não no parque, mas em uma mansão de Belo Horizonte; ou que tudo não passara de represália da família de uma ex-noiva de Delgado e assim por diante.
Em 1948, o crime já entrara no rol dos casos considerados insolúveis, quando surge um novo suspeito: uma bailarina, Iolanda Monteiro, acusa o companheiro, Paulo Gomes de Matos, também bailarino, como o real assassino de Delgado, apontando dificuldades financeiras como o motivo do crime. Começa então uma busca frenética do acusado, logo se sabendo que ele se encontrava em Buenos Aires. Só em 1951, Gomes de Matos é preso em São Paulo. Também submetido a violentos interrogatórios, nega com veemência a autoria do crime e acusa a esposa de despeito e raiva. Sua versão é tão convincente que a polícia não tem outra alternativa a não ser soltá-lo. Mais uma vez, nada.
Com o passar dos anos, o crime vai caindo no esquecimento e sai das páginas dos jornais. Até que, em 1953, uma bomba explode junto à opinião pública mineira e nacional: Yeda Lúcia Ribas, ex-funcionária da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e filha de conhecido empreiteiro de obras públicas, que estava em processo de anulação de seu casamento, acusa o próprio marido, o jovem diplomata e funcionário da embaixada brasileira em La Paz, Bolívia, Décio Escobar, de ser o verdadeiro autor do brutal assassinato ocorrido no Parque Municipal. Ela ficara sabendo de tudo num hotel de Porto Alegre: acidentado estranhamente com um disparo de arma de fogo, que lhe ferira a mão direita, e em clima de total horror e histeria, Escobar começara a gritar alucinadamente "É ele! É ele que não me larga... Luiz Delgado...". Depois, contou aos presentes como tudo aconteceu.
Décio Escobar, culpado ou bode expiatório?
O principal suspeito: o patriarca de uma tradicional família mineira.
Ao tomar conhecimento das acusações, o novo delegado encarregado do caso pede à justiça a prisão preventiva de Escobar. Mas nem foi preciso porque, sabendo das denúncias contra ele, Escobar partiu voluntariamente de La Paz para Belo Horizonte, sendo preso ainda no aeroporto da Pampulha. Diante do juiz encarregado, chama a atenção sua aparência física: bastante alto e magro, calvo, usa uma barba estilo nazareno, vestindo-se sempre de maneira impecável. Fumando demais, seus olhos nervosos denunciam uma pessoa acuada, apesar de muitos acharem que suas poses eram estudadas, fazendo parte de sua estratégia de defesa. Frente ao juiz, mantém-se absolutamente calado, mesmo sendo alertado de que o silêncio era pior para ele. E nem quando lhe foi mostrada uma fotografia de Delgado, sua fisionomia se alterou, continuando em silêncio. Aos repórteres, porém, jurava inocência, acusando a esposa de querer sua caveira para conseguir o anulamento de um conturbado matrimônio.
Depois de um ano na prisão, em 1954, Décio Escobar é levado a julgamento popular no Fórum Lafaiette de Belo Horizonte, famoso por suas paredes decoradas com telas de Di Cavalcanti, tomado por uma multidão frenética de mais de mil pessoas, ficando o triplo do lado de fora sem poder entrar. O julgamento havia se transformado num circo.
O advogado Pedro Aleixo dá um show de dialética e conhecimentos jurídicos
Na calada da noite, o “Jardim das Delícias era frequentado pelo café society mineiro.
Yeda Lúcia, a mulher de Escobar, é a primeira testemunha a depor. Muito elegante em um tailleur cinza, com olhos absolutamente duros e frios e uma calma que enervava a plateia, confirmou todos os seus depoimentos anteriores: que o marido era homossexual, habitué de um cabaré de péssimo ambiente em La Paz de nome "Gato que Fuma", freqüentado por invertidos e pela fina flor da marginália local. Que ele bebia e dançava com viciados, às vezes ficando dias sem voltar para casa, dormindo ao lado desses "índios". Finalmente, que ele, em um momento de desespero, confessara a ela ser mesmo o autor do crime.
Uma a uma as testemunhas são ouvidas, a maioria apenas repetindo o que o Brasil inteiro já soubera através da imprensa. Flávio Stockler confirmou que Décio lhe dissera que matara Delgado porque este queria convertê-lo ao homossexualismo. Jorge Carrasco, escritor vindo da Bolívia para depor a favor do réu, elogiou seu interesse em divulgar para os bolivianos a cultura brasileira, o que lhe teria granjeado um grande círculo de amizades no meio intelectual de seu país. Pimenta da Veiga brilhou como advogado de defesa, mas, na acusação, Pedro Aleixo deu um show de dialética e conhecimentos jurídicos. Foi aplaudido de pé pela multidão, apesar de estar, no íntimo, convicto de que Décio Escobar seria inocentado.
Belo Horizonte, uma cidade de pecados e crimes passionais
Décio Escobar: durante e no final do julgamento no Fórum Lafaiette, em 1954.
Depois de 38,5 horas de sessão, Décio Escobar, já chamado pela imprensa de “Dorian Gray das Alterosas”, foi considerado inocente por cinco jurados contra dois que o declararam culpado. Foi a senha para cenas de histeria coletiva, a multidão aplaudindo freneticamente o resultado que deixou no ar, há exatos 65 anos, uma pergunta até hoje sem resposta: Quem matou Eduardo Delgado?
Terminei minha pesquisa nos arquivos do Diário de Minas e saí em busca de algum policial sobrevivente da época que pudesse jogar alguma luz num episódio que só existiu nos cafundós dos breus. Depois de muitos dias de peregrinação por várias delegacias, cheguei à do bairro da Lagoinha, onde encontrei um delegado sentado atrás de uma mesa, com um charuto no canto da boca e uma pança cultivada por tonéis de cerveja sorvidos ao longo dos anos. Ele disse:
- Meu filho, você é um jovem jornalista em começo de carreira. O melhor que faz é deixar esse assunto de lado. Todos, antes de você, que mexeram nesse assunto, se deram mal. Nem Delgado nem Escobar era homossexuais. Delgado foi assassinado a mando de um figurão chifrudo da cidade porque tinha um caso com a mulher dele. Quando eu digo figurão, estou me referindo ao cacique de uma família tradicional mineira. Na polícia, todo mundo sabe disso, mas ninguém abre o bico. Aqui é assim que se resolve esse tipo de situação. Portanto, se cuida. Espero não te encontrar esfaqueado de, madrugada, numa esquina qualquer de Belo Horizonte.
O veterano delegado pontificava com a certeza de quem vivia numa cidade de pecados e crimes passionais, onde tudo era permitido, menos fazer amor. Bateu o charuto na ponta da mesa, ajeitou os suspensórios e se retirou da sala cantarolando baixinho o hino das Alterosas: “Oh, Minas Gerais, quem te conhece não esquece jamais...”
*Este texto contém informações disponíveis no blog 'Década de 50', de autor desconhecido.
Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total.
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