sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Padres casados: qual o problema?

Precisamos repensar a relação da Igreja com o corpo e com a sexualidade, as noções de vocação e santidade, o processo formativo
Católicos não consideram padres mais santos por serem celibatários
Católicos não consideram padres mais santos por serem celibatários (Josh Applegate/ Unsplash)
Gilmar Pereira*

E se os padres não fossem celibatários, o que mudaria para o povo? Substancialmente, nada. Há uma polêmica grande entre os mais “igrejeiros” sobre a ordenação de casados, mas que é simplesmente desnecessária. As questões abalam mais aos apegados às tradições do que àqueles que conhecem a Tradição da Igreja, entre os piegas da instituição que aos de fé católica autêntica.

Primeiro, vamos à realidade. As pessoas mais acostumadas à vida paroquial e de instituições ligadas à Igreja sabem separar bem a vida do clero da fé da Igreja. Elas conhecem quem são os padres que guardam o celibato e os que têm casos (esporádicos ou fixos), inclusive os que têm mulher e filhos. Sim! Parece chocante, mas não para quem está na Igreja.

Lembro-me bem de um excelente padre que mantinha um relacionamento de longa data com a secretária de uma instituição de certa diocese. Ele trabalhava bem e feliz. Aliás, ela era muito rígida e o cobrava para que desempenhasse seu bom serviço. Todos os que eram mais próximos sabiam. Ninguém comentava o caso, só a excelência de ambos: disponíveis aos demais, disciplinados em seus compromissos, honestos em relação ao dinheiro.

As pessoas de fé separam bem o ministério ordenado dos pecados do ministro, sabem que a graça pressupõe, mas supera a natureza. Não é o padre, em suas limitações que absolve pecados, mas Deus, tendo aquele homem como instrumento. A força dos sacramentos não diminui para os fiéis. Só os que estão no início de caminhada se espantam com algo, mas logo compreendem que nada altera na sua experiência de fé.

Está, inclusive, no imaginário popular a ideia de que padres não aguentam guardar totalmente a continência sexual que lhes é pedida. E ninguém deixa de ir à Igreja por isso, embora também se saiba que há inúmeros outros que não se envolvam com ninguém – e nem por isso são melhores ou piores. Além do mais, perdoa-se facilmente o sexo dos padres, mas não corrupção. Comunidade nenhuma aceita desvio de dinheiro ou abuso de consciência. Pergunte às “beatas” da comunidade. Elas lhe contarão tudo e de como protegem seus padres, vulneráveis afetivamente, de homens e mulheres que querem se aproveitar de suas carências.

Se essas coisas são sabidas no interior da Igreja, onde está o problema? É que nela, ainda, vale muito o como você aparenta. Você pode até fazer coisas não permitidas, mas deve manter a postura. Grande parte dos formadores sabem disso e aprovam ou demitem vocações com base nisso, na capacidade de alguém representar bem. Quer dizer que ninguém acredita no celibato? Não. O celibato é visto como valor sim e muitos tentam vive-lo porque assim se sentem chamados.

Em tese, a castidade é vivida de duas formas. No celibato, abre-se mão de um amor exclusivo para amar mais e estar livre para o serviço dos demais. No matrimônio, a castidade se manifesta no amor por uma pessoa que lhe abre ao amor e serviço do próximo. E aí é que está, de fato, o cerne da questão: o que abre mais uma pessoa ao amor, renunciar ou viver a intimidade com alguém? Isso tem a ver com a vida, a espiritualidade, a psiqué, a história de cada vocacionado. Outra coisa é modo com o qual a pessoa se sente chamada a servir. Assim, celibato e presbiterato são duas vocações que podem se encontrar ou não na mesma pessoa.

Alguém pode se sentir chamado a ser padre, mas não celibatário. Outros se sentem chamados ao celibato e não ao presbiterato, como acontece aos freis ou irmãos religiosos que não se ordenam. Entretanto, a continência sexual passou a vir no combo da ordenação e, por isso, a pessoa tem que escolher o que lhe é mais central. Se opta por ser padre, deverá fazer um esforço para construir valor a algo que é obrigada a viver. Caso contrário, deverá assumir a expressão comum na boca de formadores de seminário: “Você é livre para viver o que aqui se manda ou para ir embora. Ninguém te obriga a ficar aqui” – uma redução simplista, marcada pela falta de argumentos convincentes, aplicada geralmente para imposição da própria vontade sobre o formando. Ou obedece ou sai. Beleza?!

Aí é que entram os “escondidos” na formação presbiteral. Em processo de incorporar um modo de proceder, o seminarista não tem no formador uma ajuda, mas alguém que vai aprová-lo ou reprová-lo. Importa responder à equipe de formação em seu imaginário vocacional do que resolver as próprias questões. Muitos seminaristas lutam bravamente por sua integração psicoafetiva, apesar das estruturas neuróticas e neurotizantes em que alguns vivem. Sim, há instituições saudáveis e bons formadores, mas há muitos problemáticos. Pergunte aos bispos que exercem o cuidado pastoral dos formandos como é difícil nomear alguém para a reitoria dos seminários.

Um desafio se encontra na concepção da santidade, algo que todo cristão é chamado a viver. Essa, que deveria ser entendida como uma consagração da vida à Deus, dada no seguimento de Jesus, costuma ser confundida e lida dentro de categorias não cristãs. O dualismo que separa corpo e espírito fez imaginar tudo o que é carnal como sendo pecaminoso e mal. Assim, a santidade seria um desapego às realidades do mundo e um apego ao etéreo céu. Quem assim pensa não entendeu o que é ressurreição da carne, nem a bem-aventurança que promete a Terra como herança.

O Sínodo da Amazônia se aproxima do seu fim e, com ele, a expectativa de que homens casados possam ser padres. A ideia tem sido a de atender lugares remotos. Entretanto, precisamos repensar a relação da Igreja com o corpo e com a sexualidade, as noções de vocação e santidade, o processo formativo. Ainda surgirão questões de ordem prática como as dos que deixaram o presbiterato para casar. Se casados podem ser padres, porque os que se casaram não poderiam voltar a exercer seu ministério? Como seria a relação da Igreja com as mulheres e filhos dos padres? E a mobilidade em uma diocese? Apesar de tudo isso, o povo de Deus já está pronto para as mudanças. E há quem já brique que quer chegar por último para ser mulher de certos padres.

Os textos desse especial se põem a pensar a relação de celibato e presbiterato. Rodrigo Ferreira da Costa discute a questão da compulsoriedade do celibato para todo o clero no texto Celibato consagrado: dom e desafio para Igreja. Felipe Magalhães Francisco atenta para os problemas ligados à atual compreensão clerical da Igreja em A urgente e necessária reforma no ministério ordenado. Já José Almir da Costa partilha a experiência e a expectativa de alguém que deixou o ministério ordenado em Ação pastoral dos padres que pediram dispensa do celibato.

*Gilmar Pereira é mestre em Comunicação e Semiótica, graduado em Filosofia e Teologia, professor de oratória, mestre de cerimônias e fotógrafo
domtotal.com

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