quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Redatora do instrumento de trabalho do sínodo comenta 'morte' do documento

domtotal.com
Márcia Maria de Oliveira, doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia, é uma das especialistas convocadas pelo papa para auxiliar nos trabalhos do Sínodo da Amazônia.
"O instrumentum laboris chamamos de documento 'mártir', justamente porque ele precisa morrer para fazer surgir a exortação apostólica, que é o documento oficial do sínodo." (Divulgação/UFRR)
Mirticeli Medeiros*
Especial para o Dom Total

Cidade do Vaticano - “O Instrumentum laboris (IL, instrumento de trabalho) chamamos de documento 'mártir', justamente porque ele precisa morrer para fazer surgir a exortação apostólica, que é o documento oficial do sínodo”, disse a professora. Márcia repete as palavras que o papa Francisco proferiu durante a primeira reunião do evento, ocorrida no dia 6. De acordo com o pontífice, “o documento foi feito para ser destruído”.

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Márcia é um dos nomes de destaque nesse sínodo. Foi ela que integrou a equipe de redação do Instrumentum laboris, uma lista de temas que serão discutidos no decorrer da assembleia. Em entrevista ao Dom Total, ela falou sobre as fases de construção desse texto e como os temas ambientais e sociais serão tratados durante a reunião.

Você participou da elaboração do IL. Explique como foi construído esse documento.

O Instrumentum laboris recolheu um parecer através das várias modalidades de escuta sinodal – rodas de conversa, assembleias territoriais e seminários temáticos – que percorreram toda a região pan-amazônica. E o documento sintetizou todas essas demandas. Entretanto, é importante compreender que o Instrumentum laboris priorizou questões transversais relacionadas aos nove países que compõem a região. 

Sendo assim, assuntos muito específicos do território brasileiro ficaram fora do IL, justamente por não comporem a conjuntura dos países da região pan-amazônica. (...) Tivemos 86 mil pessoas participando de forma direta nesse processo de escuta, ou seja, a diversidade de proposições foi imensa. Foi feita uma síntese, na medida do possível, para ser fiel a essas proposições. Ele é um documento de orientação somente. Algumas questões podem ser consideradas pela exortação apostólica e outras pode ser que fiquem apenas no campo da consulta.

Como você avalia o trabalho que vem sendo feito pelo magistério atual em relação aos direitos dos povos indígenas, sobretudo no tocante à demarcação de terras?

A demarcação das terras indígenas é questão de direitos. E o documento fala claramente que, com os direitos, não se negocia. São direitos conquistados e que não podem ser negociados. A demarcação de terras é um deles. Mas isso envolveria questões muito privativas de algumas regiões e realidades de determinados pontos da Igreja. Por causa disso, a questão das demarcações não foi apresentada no Instrumentum laboris e não será discutida com tanta autoridade durante o sínodo. 

A demarcação, como um todo, como um direito indígena com certeza será pautado, mas questões muito específicas, não. A demarcação é um direito e o sínodo reafirma esse direito. A luta pela terra, pelo território será mencionado, mas o sínodo não trará a demanda de demarcações específicas, apenas a demarcação enquanto direito. Isso está no IL e será pauta da exortação apostólica.

Se escuta muito nesse sínodo que os povos indígenas são nossos mestres de humanidade em relação a muitas questões. O cuidado com a criação é um deles. De que forma o sínodo irá colher essa herança proveniente desses povos originários?

O histórico da Igreja nessa região é de muito compromisso, de muita defesa da causa indígena. (...) Nós temos uma parte significativa da Igreja que assumiu e continua assumindo a causa indígena como uma causa evangelizadora, não apenas no sentido de uma prática colonialista da evangelização, mas de uma Igreja que vem se deixando evangelizar pelos valores dos povos indígenas, de modo muito especial os valores da partilha, do cuidado com a casa comum, os valores do próprio entendimento de família etc.  

Na grande maioria das etnias indígenas, há uma responsabilidade com relação ao cuidado, ao carinho com as crianças: não se vê abusos e maus tratos contra as crianças e nem contra as mulheres. São grandes lições que podemos aprender com os povos indígenas, uma vez que a Pan-Amazônia passa por um processo delicado de violência em todos os sentidos – contra mulheres, contra crianças. E isso tem sido um desafio muito grande. 

O Instrumentum laboris recolhe, então, da caminhada da Igreja nessa região, elementos que podemos compartilhar: uma Igreja que traz a palavra de Deus e o Evangelho para os povos indígenas e, ao mesmo tempo, aprende dos povos indígenas essas grandes lições que dizem respeito ao cuidado com a natureza, com as crianças, com as pessoas. A Igreja, portanto, tem um histórico de defesa desses povos. E o sínodo nos impulsiona a continuarmos nessa defesa. E também nos deparamos com essas trocas simbólicas, ou seja, o Evangelho inculturado nas etnias indígenas e relido pelos valores dessas comunidade. Não se trata de negar aos povos a palavra de Deus, mas de trazer a palavra de Deus a partir de uma outra perspectiva, a partir dessa relação com a natureza.

Cristianismo e meio ambiente. Catolicismo e cultura indígena. Finalmente um evento capaz de demonstrar que tais temas estão mais interligados que nunca. A lógica do lucro, que não condiz com o cristianismo, é o que será combatido durante esse sínodo?

Quando o papa Francisco lançou, em 2015, a encíclica Laudato si, ele recolheu das diversas experiências da Igreja do mundo inteiro em relação à questão da criação, inclusive no tocante à Amazônia. Esse sínodo é uma extensão da Laudato si. Então, quem não leu, não se aprofundou a partir dessa encíclica, não compreenderá a proposta do sínodo, que reafirma o compromisso que todos nós, como Igreja, temos com o cuidado com a casa comum, um cuidado que implica em uma nova relação na perspectiva dos povos indígenas. Eles cuidam não porque têm medo da natureza, mas porque amam a natureza. E isso muda a perspectiva ocidental de cuidado, que passa pelo medo.

“Ah, a natureza irá se vingar”. Não. Os povos indígenas cuidam por amor, porque sabem que a natureza cuida deles. E devemos aprender com os povos indígenas novas práticas, novos conceitos e ações eclesiais da Igreja na Pan-Amazônia. E o cuidado com aspectos da natureza que estão bastante comprometidos, por exemplo, a questão das queimadas. A troca das florestas pelo plantio de soja, pela criação de gado. E é nesse entendimento que mostramos que a floresta tem uma função ambiental muito mais importante. Ela contribui muito mais para o planeta do que o cultivo de soja e a criação de gado. A soja não produz chuva e nem espalha chuva em outras regiões, pelo contrário: a soja exaure os mananciais e consome toda a reserva de água a seu redor. E queremos defender essa terra como casa comum, como parte importante dessa casa comum. 

E não podemos trocar essa floresta por outras modalidades de produção na região. A floresta enquanto propriedade comum, como local de partilha dos bens, que distribui fonte de vida, e a floresta que distribui chuvas não só para a Amazônia, mas para diversas regiões do Brasil. Se a gente já tem em outras regiões do Brasil a produção de alimentos, a Amazônia contribui com as chuvas para a produção desses alimentos. Não precisamos destruir a Amazônia para distribuir mais alimentos. A ecologia integral passa por esses elementos. Quem entendeu as provocações apresentadas na Laudato si, vai entender as provocações do sínodo.

O papa Francisco, na sua opinião, já pode ser considerado um dos maiores representantes dessa revolução cristã em prol da dignidade humana e da preservação da casa comum?

Temos papa Francisco como um grande representante. É ele quem vem conduzindo esse processo de reflexão e tomada de decisão. A encíclica Laudato si é um processo de reflexão e o sínodo vai nos provocar essas tomadas de decisão. Sem dúvidas, papa Francisco é a pessoa mais importante nesse debate a nível mundial.

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*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.

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