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Relatório de propostas escrito durante a Assembleia de Bispos para a Região Pan-Amazônica é entregue ao papa Francisco
Divulgado documento final do sinodo da região pan-amazônica (Mirticeli Medeiros)
Mirticeli Medeiros*
Especial para o Dom Total
Cidade do Vaticano – “Durantes as poucas colocações do papa durante o sínodo, ele pediu que fizéssemos transbordar a Amazônia”, disse uma fonte à nossa reportagem. Os discursos de Francisco, proferidos na sala sinodal, não foram divulgados para a imprensa.
O pedido feito pelo pontífice, na visão de muitos participantes, foi atendido com êxito no texto final da Assembleia Especial para a Região Pan-Amazônica, publicado nesta sexta-feira (26). O documento contém 33 páginas e é dividido em 118 artigos que tratam de questões eclesiais, sociais e ambientais. Todos os itens foram aprovados pela maioria do grupo, ou seja, cada artigo recebeu dois terços dos votos dos participantes eleitores. Quando terminou a última sessão do sínodo, Papa Francisco desceu para cumprimentar os jornalistas e respondeu à imprensa brasileira: "Estou feliz com o sínodo. Gostei do resultado. Foi bom para a Amazônia".
Diaconisas
Nos bastidores do sínodo, já se sabia que grande parte dos padres sinodais se expressou favorável ao diaconato feminino. No entanto, o documento não faz a proposta, mas indica a reativação da comissão de estudo – convocada por papa Francisco em 2016 e desfeita no início deste ano – para que se avalie essa possibilidade para o futuro.
Os participantes sugeriram uma outra via, parecida com a apresentada por Bento XVI na exortação apostólica Verbum domini, de 2010, quando ele fala do conferimento de um ministério especial aos leigos "para a proclamação da palavra de Deus". Essa função, na tradição latina, é considerada um “serviço de natureza laical”.
“Pedimos para que mulheres adequadamente formadas e preparadas possam receber os ministérios do acolitato e leitorato, entre outros que poderão ser desenvolvidos e pensados”, diz o artigo 102 do documento.
A parte dedicada às mulheres também pede que elas sejam mais ouvidas dentro das estruturas eclesiais, de modo “que sejam consultadas e participem das decisões”. Solicita que elas integrem os conselhos pastorais das paróquias e dioceses, sem fazer referência ao direito voto em assembleias sinodais, assunto que repercute desde o Sínodo dos Bispos para os Jovens, realizado em 2018.
Viri probati: ausência do termo, mas universalidade da proposta
Considerado um dos temas mais polêmicos do sínodo, a questão dos padres casados recebe bastante destaque. De acordo com uma fonte, a disputa foi acirradíssima para a aprovação desse item. No artigo 111, os bispos fazem uma solicitação formal a Francisco para que “homens idôneos e reconhecidos pela comunidade se ordenem sacerdotes, podendo ter uma família legitimamente estável e constituída”. No texto, os membros do sínodo excluíram o termo técnico viri probati, utilizado pelo Instrumentum laboris e citado em várias discussões do sínodo.
Eles acrescentam que a função dos padres casados seria a de “pregar a palavra de Deus e celebrar os sacramentos nas zonas mais remotas da região amazônica” como qualquer outro padre sacerdote celibatário. A ideia é aplicar a nova modalidade somente no território amazônico, porém admite-se que alguns participantes do sínodo pediram “que fosse feita uma abordagem universal do tema”.
Reforçando a importância do celibato para a história da Igreja Ocidental, os participantes disseram que “muitas comunidades eclesiais do território amazônico têm enormes dificuldades de acesso à Eucaristia”, situação que, na visão deles, justificaria o pedido.
Ao longo do sínodo, a constatação da carência de padres na região e a dificuldade de encontrar sacerdotes dispostos a se transferir para a Amazônia, levou muitos participantes a dar um parecer positivo à proposta.
Mas foi dom Erwin Kräutler, bispo emérito da prelazia do Xingu (PA) quem apresentou essa via pela primeira vez, no Vaticano. Em 2014, o religioso disse ao papa Francisco que estava preocupado com “as comunidades que não tinham acesso à Eucaristia, a qual é considerada, por João Paulo II, o centro da vida da Igreja”.
O artigo 109 reforça o pedido feito pelo bispo, embasando-se em alguns trechos de documentos da Igreja. Os bispos fundamentam sua decisão dizendo que “parece estranho falar de direito a celebrar a Eucaristia segundo aquilo que é prescrito, mas não citar o direito mais fundamental de acesso à Eucaristia para todos”.
Rito Amazônico
Além de propor a formação de um clero indígena, os participantes pedem a criação de um rito amazônico para “adaptar a liturgia, valorizando sua cosmovisão, as tradições, os símbolos e os ritos originários, que incluem dimensões transcendentes, comunitárias e ecológicas”. Tomando como base a própria tradição católica e sua variedade de ritos, eles consideram que esta seria a manifestação de inculturação do Evangelho que sempre caracterizou a trajetória do catolicismo.
“Na Igreja Católica temos 23 ritos diferentes, sinal claro de uma tradição que, desde os primeiros séculos, tentou inculturar os conteúdos da fé e sua celebração através de uma linguagem mais coerente possível com o mistério que se quer celebrar”, reforça o artigo 117.
De maneira prática, sugere-se a tradução de livros litúrgicos, da Bíblia e das músicas “preservando a matéria dos sacramentos e adaptando-os à forma, sem perder de vista o essencial”.
No texto, fica claro que não é um desejo de assimilar qualquer forma de sincretismo, mas inaugurar um rito novo “de modo que se expressem o patrimônio litúrgico, teológico, disciplinar e espiritual amazônico”. E acrescenta que o estabelecimento do novo rito “se somaria ao ritos existentes na Igreja, enriquecendo a obra de evangelização, a capacidade de expressar a fé em uma cultura própria e o sentido da descentralização e colegialidade”.
Direitos dos povos indígenas
Além disso, o texto reconhece o papel dos povos indígenas na preservação da natureza e os caracteriza como os maiores promotores da Ecologia Integral”, termo adotado por papa Francisco na encíclica Laudato Si, publicada em 2015, que caracteriza um novo ambientalismo, ancorado nos valores do Evangelho.
Dizendo que é papel dos governos nacionais “demarcar e proteger os territórios indígenas”, os bispos denunciam “a falta de proteção também em áreas demarcadas, as quais são invadidas pela mineração, pela extração florestal, pelos grandes projetos de infraestrutura, pelos cultivos ilícitos e pelos latifúndios que promovem o monocultivo”.
“A Igreja opta pela defesa da vida, da terra e das culturas originárias amazônicas. Isso implicaria o acompanhar dos povos amazônicos no registro, na sistematização e difusão de dados e informações sobre seus territórios e a situação jurídica dos mesmos. Queremos priorizar a incidência e o acompanhamento para conseguir a demarcação de terras”, diz o artigo 78.
No artigo 49, destacam também a presença dos 130 povos isolados que ainda habitam a região pan-amazônica e exigem a inviolabilidade de seus territórios. Os bispos dizem que, na atualidade, essas etnias estariam “expostas à limpeza étnica e ao desaparecimento”, o que reforça esse apelo à proteção.
Novidades
O texto aponta uma série de “neologismos teológicos”, como o desejo de que se faça “uma opção preferencial pelos povos indígenas” e o apelo para que se promova uma “conversão ecológica” ou que não se cometam “pecados ecológicos”, temas repetidos em várias partes do relatório sinodal. Evitaram-se termos que poderiam gerar confusão ou ambiguidade, como a expressão “mãe terra”, que aparece somente uma vez no documento.
Não à evangelização “colonialista’
Em missa de abertura do Sínodo da Amazônia, realizada no dia 6 de outubro, o papa Francisco pediu que se evitassem “os neocolonialismos” ao referir-se à Amazônia, reconhecida no Brasil como “terra de disputas”. Os bispos reforçam esta questão dizendo que o “colonialismo é a imposição de determinados modos de viver de uns povos sobre os outros, tanto econômica, como cultural e religiosamente”. A partir dessa interpretação, eles pedem “para superar o clericalismo e as imposições arbitrárias”.
Observatório sócio-pastoral amazônico
Como já havia sido proposto durante as discussões, pede-se a criação de um “observatório socioambiental pastoral”, uma estrutura para atuar na promoção e na defesa dos direitos humanos na Amazônia. O novo órgão seria ligado aos organismos que já atuam na região, como a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) e Caritas, com apoio do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) e dos episcopados nacionais.
Nesse contexto, o documento também reconhece a trajetória “daqueles que lutam, arriscando as próprias vidas para defender o território”, em clara referência aos chamados “mártires da Amazônia”, cuja proposta de reconhecimento já foi entregue ao papa Francisco.
Fase pós-sinodal
Na última sexta-feira, foram eleitos os membros da “comissão pós-sinodal”, responsável por colocar em prática as propostas do sínodo. Foram eleitos 13 membros, entre os quais quatro brasileiros: dom Alberto Taveira, arcebispo de Belém (PA), dom Erwin Kräutler, bispo emérito da prelazia do Xingu (PA), dom Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo e Dom Roque Paloschi, bispo de Porto Velho (RO).
Além dos nomes votados na assembleia, o papa, nos próximos dias, pretende nomear uma leiga, um leigo e uma religiosa para compor a equipe.
O texto final já foi entregue ao papa neste sábado (26). Depois desse procedimento, cabe ao sumo pontífice identificar se as sugestões levantadas correspondem ou não aos objetivos pré-definidos durante a convocação daquele sínodo específico. Após alguns meses dedicados a esse processo de avaliação, o líder católico publica a chamada “exortação apostólica pós-sinodal” com algumas orientações para a Igreja de todo o mundo. Francisco já confirmou que publicara o documento especial para a Amazônia antes do fim do ano.
O Sínodo dos Bispos, criado por Paulo VI em 1965, foi uma resposta ao desejo de sinodalidade manifestado pelos participantes do Concílio Vaticano II. Segundo regimento interno, é um órgão de caráter consultivo, não deliberativo. Sendo assim, é um espaço aberto a propostas e orientações pastorais, não para mudanças nos aspectos doutrinais.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.
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