segunda-feira, 4 de novembro de 2019

A dignidade do artista

domtotal.com

Integridade, produto raro nas prateleiras do mercado das artes


Fernanda Montenegro, 90 anos, intérprete de personagens eternos.
Fernanda Montenegro, 90 anos, intérprete de personagens eternos.
Alexis Parrot*
Talento, ousadia, ruptura, lirismo, questionamento, visão, transcendência.... entre estes itens (e muitos outros), quais seriam os principais para definir o tamanho de um artista? Gosto especialmente de todo e qualquer um que tenha sido - ou venha a ser - censurado; indica a sinceridade daquele sujeito em tempos de mentira generalizada.
Mas acima de tudo está a dignidade, produto tão raro nas prateleiras do mercado das artes, justamente porque não se pode comprar o que nunca esteve à venda. Morto recentemente, Walter Franco, o zen-socialista, como chegou a se autointitular, era assim. É certo que pagou preço alto, mas sua produção radical nunca foi amainada pelas imposições das gravadoras. Até o último dia de vida, seguiu o próprio mantra ao manter "a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo" e, por isso, a integridade de sua obra.
Em participação memorável no talk show de Jô Soares em 1990, ainda no SBT (quando o gordo ainda ouvia seus convidados), em uma referência a seu clássico Cabeça, o apresentador perguntou se ele nunca havia abaixado a cabeça para nada. Franco disse que este aprendizado era a grande arte. E continuou: "...é a coisa da humildade sem a subserviência, da autoanálise, a gente reconhecer os próprios erros, as próprias falhas".  
A produção radical de Walter Franco nunca foi amainada pelas imposições das gravadoras.A produção radical de Walter Franco nunca foi amainada pelas imposições das gravadoras.
É a beleza da iconoclastia que não se coloca acima de ninguém; que critica a tudo, inclusive a si mesma; que se percebe imperfeita e busca na arte um caminho de liberdade comum a todos. Sem o desejo de profetizar ou liderar, apenas de se fazer ouvido e tocar o público de alguma forma.

Como Fernanda Montenegro, do alto da dignidade de seus 90 anos; intérprete de personagens marcantes e eternos, que nos fizeram sonhar mas também pensar; dona doida - como Adélia Prado, autora dos poemas que, costurados, forjaram o monólogo homônimo, encenado por Fernandona nos anos 90. É dela a frase, tirada de Solte os cachorros: ..."vou certificar-me: se ainda me olham duas vezes, se ainda intimido, se pelo que amo ainda faço a face dos homens abrandada e ansiosa. Enquanto dura a trégua, vou guerrear."
Chico Buarque, premiado com o Camões, foi obrigado a ouvir do presidente (que, embora eleito, não nos serve) a recusa de assinar o diploma. Disse que seria um segundo Prêmio Camões a não assinatura.    
A integridade de Chico Buarque garantiu-lhe dois prêmios Camões de uma só vez.A integridade de Chico Buarque garantiu-lhe dois prêmios Camões de uma só vez.
A dignidade também marcou a cerimônia de entrega da láurea ao último escritor brasileiro a ser agraciado antes de Chico, em 2016. O descaso começou já na apresentação, quando a tecnocrata de plantão (a diretora da Fundação Biblioteca Nacional à época, Helena Severo), por nervosismo ou ignorância, errou o nome do premiado e transformou Nassar, o gigante Raduan, em Nasser.

O discurso proferido por Nassar foi politicamente contundente. Questionou o golpe parlamentar que derrubou Dilma e a indicação de Alexandre de Moraes para o STF. A seguir, ouviu calado um sem número de impropriedades vomitadas pelo ministro da cultura de Temer, o casuísta Roberto Freire. A plateia se levantou contra o ex-comunista, mas o autor de Lavoura arcaica manteve-se impassível. E digno.  
 Saber baixar a cabeça... saber guerrear... mas não há trégua.
 Ai Weiwei, após amargar uma temporada nas masmorras da ditadura chinesa sob falsas acusações ganhou mais projeção ainda, além da que já possuía. Hoje, corre o mundo dedicado a uma espécie de arte monotemática, denunciando os horrores por que passam os refugiados - ao mesmo tempo em que é acusado de oportunismo por algumas vozes independentes. Seria um caso de dignidade perdida? O fotógrafo Sebastião Salgado encontra-se na mesma vala a partir do momento em que passou a defender mineradoras, mais especificamente a Vale do Rio Doce (sua patrocinadora constante), mesmo após a tragédia de Mariana.
O contraponto a Weiweis e Salgados é o misterioso Banksy (foto da capa), que vem balançando as estruturas do mercado de arte ao questionar sua falta de princípios. Já fez um parque temático (Dismaland) para "anarquistas principiantes e suas famílias" e picotou ao vivo uma de suas obras enquanto era leiloada na Sotheby's londrina. Sua recusa em revelar a identidade tem a ver com a preocupação de acabar na cadeia, mas também sustenta um interessante manifesto contra o artista celebridade, uma praga pior que a de gafanhotos.
No final do dia, a quem interessar possa, é este amálgama de intenções e projetos; de posicionamentos e omissões; de verdades e meias verdades que vai construindo o percurso da arte contemporânea. Famosos e desconhecidos acotovelam-se na estação, aguardando o trem que poderá levá-los ou não à perenidade. Os trilhos são a própria arte - mas também seus desvios e descarrilhamentos. E apenas a dignidade pode servir de bússola.
O fotógrafo Sebastião Salgado defende a Vale mesmo depois da tragédia de Mariana.O fotógrafo Sebastião Salgado defende a Vale, mesmo depois da tragédia de Mariana.
*Alexis Parrot é diretor de TV, roteirista e jornalista. É colaborador de várias publicações brasileiras e crítico-comentarista de televisão no Dom Total, onde escreve às terças-feiras.

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