segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Só dói quando a gente ri

A comédia 'the Politician', da Netflix, conta, com humor negro, como nascem os políticos


A série 'the Politician' é candidata, desde já, a uma penca de troféus Emmy
A série 'the Politician' é candidata, desde já, a uma penca de troféus Emmy
Rosangela Petta*
“Minha mãe era uma mulher fria. Pelo menos, foi isso o que a babá me contou”, diz Gwyneth Paltrow, fazendo a madame-bossa-nova-californiana Georgina. O marido dela, vivido pelo veterano ator Bob Balaban, bilionário cuja principal ocupação é colecionar tudo o que for classudo e caro, também fala com desconcertante sinceridade enquanto arruma a coleção de livros raros: “Um dia, vou me aposentar e tentar ler alguns.”
São diálogos como estes que fazem da primeira temporada da série the Politician, lançada pela plataforma de streaming Netflix há menos de dois meses, uma das melhores do ano. Vale apostar em um cacho de troféus Emmy no ano que vem, na premiação do melhor da produção para TV. Pode ser pelo elenco, puxado pelo protagonista, Ben Platt (estrela ascendente saída dos musicais da Broadway) e turbinado por coadjuvantes como as veneráveis Jessica Lange e Bette Midler — além da própria Paltrow, que ainda é produtora executiva. Ou, quem sabe, a série seja reconhecida em outras categorias: a bela direção de arte, cinematografia e montagem vigorosas, figurino esperto, a trilha sonora pop que atua como elemento comentador das cenas, roteiro cheio de reviravoltas. Ou, ainda (e merecidamente), palmas para os idealizadores, roteiristas e diretores Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan.
O melhor da obra, porém, é o ponto de partida para desenrolar a trama: a nova-velha maneira com a qual jovens se preparam para conquistar cargos na esfera política. Digo “nova-velha” porque, aparentemente, a única diferença entre as conspirações de hoje e as de outros tempos diz respeito aos recursos disponíveis. E falo em formação de jovens políticos porque, até mesmo no Brasil, onde nomes mais do que manjados se recusam a largar o osso, será inevitável que, a certa altura, sejam substituídos.
O protagonista Ben Platt é uma estrela ascendente saída dos musicais da BroadwayO protagonista Ben Platt é uma estrela ascendente saída dos musicais da Broadway
Tudo bem que a história se acolchoe no contexto dos Estados Unidos, em que os quadros saem da camada de bem-nascidos e/ou bem formados nas melhores universidades diretamente para os comitês dos partidos Democrata ou Republicano. Mas basta assistir a the Politician e logo se perguntar: como não reconhecer os mesmos valores, vícios, táticas e cacoetes que rolam em eleições na vida real, aqui, ali, entre nós?

Se o roteiro trata o tema pelo gênero da sátira, é claro que personagens e situações são facilmente reconhecíveis. Lá está “o candidato”: ele já surge no ambiente estudantil, em disputa para representar os alunos do ensino secundário junto à direção do colégio. Tem uma ambição quase patológica que encobre um profundo sentimento de solidão e inferioridade — verossímil, não? Atrás dele vêm “os estrategistas”, uns poucos amigos, assessores de primeira hora, muito bem informados, que “fazem o diabo para ganhar a eleição” — como revelou a ex-presidente Dilma Roussef. No caso da série, o diabo literalmente veste Prada, Chanel, Gucci, às vezes uma camisetinha mais clean pra contrastar, e põe-se em campo para fazer sondagens, bolar ações politicamente corretas para atrair simpatizantes ou administrar crises.
Não falta nem “o esqueleto no armário”, já que é demasiadamente humano que toda pessoa guarde um segredo. Sim, está tudo ali, inclusive os procedimentos clássicos para a construção de um aspirante a cargos executivos: a negociação para o posto de vice, a troca de apoios, o levantamento de fundos, o medo do adversário, o discurso adaptado à ocasião, a caça ao eleitorado do tipo nem-aí. Com um saboroso toque de crítica, são hilariantes as cenas sobre “pesquisa de intenção de voto”, em que uma garota tergiversa cheia de palavrório técnico, ambiguidade, ponderações e (claro) nenhuma certeza. Assim, o candidato é moldado. Não por acaso, a vinheta de abertura é uma caixa de madeira em forma de pessoa, contendo tudo o que o personagem é e quer ser, que é delicadamente fechada, aprimorada à base de  formão, polida, envernizada e devidamente vestida para, então, ganhar vida. Até parece que o projeto se inspirou na versão americana de House of Cards, imaginando a juventude do casal Frank e Claire Underwood. Aliás, a evocação do nome faz outra ligação: “wood”, em inglês, significa “madeira”.
Gwyneth Paltrow é Georgina, uma impagável madame-bossa-nova-californiana.Gwyneth Paltrow é Georgina, uma impagável madame-bossa-nova-californiana.
A série nos faz rir, sim, e bastante. Mas esse riso está longe de ser uma reação de alegria. Como toda obra artística bem-feita, the Politician provoca reflexão. Faz pensar, por exemplo, em que tipo de ensinamento a práxis da empreitada eleitoral oferece às futuros aspirantes a líderes. Pois o espelhamento ficcional deste projeto, em que os truques da realidade são transferidos para o mundo ainda embrionário da escola, acontece porque os adolescentes se valem da História. É o passado, recente ou nem tanto, que guia os adolescentes do enredo na decisão de fazer isto ou aquilo. Eles buscam biografias de ex-presidentes, pesquisam vídeos de candidatos derrotados, analisam trajetórias de deputados, senadores e governadores, estudam análises jornalísticas de época, checam estatísticas, comentam fofocas de bastidores.

Eu não sei de você, mas foi a primeira vez que me preocupei com o efeito mais amplo e perniciosamente pedagógico do comportamento de muitos agentes políticos que acompanhamos pelo noticiário. Um presidente ruim (ou vereador, líder comunitário, o que seja) não prejudica apenas o momento presente. Não compromete somente o futuro breve e concreto da população. Nem dá maus exemplos que logo são esquecidos. Na maioria das vezes, o político profissional, que não precisa de uma ideologia pra chamar de sua, reforça a ideia dura, imutável e cristalizada de que o máximo que se pode fazer em termos de modernização é manipular as redes sociais durante a campanha.
A série ainda não chegou lá, então não é possível saber se, após amargar alguns percalços, os personagens alcançarão perspectiva mais otimista. Aguarda-se com muita curiosidade a segunda temporada. Pelo menos, já se sabe que o núcleo principal passará à fase adulta do jogo, com ênfase revigorada no quesito “esqueleto no armário”.
*Rosangela Petta, paulistana, é jornalista, consultora em comunicação e escritora. Em mais de 40 anos de imprensa, trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, revista IstoÉ e TV Cultura de São Paulo, entre outras. Foi professora de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e, na ficção, escreveu peças de teatro, roteiros de cinema e TV. É autora do romance ‘Relato das venturas, confissões e arrependimentos do Sr. João dos Matos e suas nefastas consequências’ (Editora Cintra). Atualmente, escreve para diversas publicações brasileiras e atua como coach para o domínio da escrita.

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