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Escrita por Herman Hesse em 1904, biografia de São Francisco de Assis ganha versão brasileira
Obra de Giotto retrata o santo italiano em atividades mundanas carregadas de divindade (Divulgação)
Faustino Rodrigues*
Como escrever a biografia de um dos personagens mais célebres do cristianismo? Hermann Hesse é categórico na resposta ao apresentar Francisco de Assis, lançado recentemente pela Record. O livro, publicado na Alemanha em 1904, somente agora com uma versão brasileira, demonstra a clara admiração do autor, Nobel de Literatura em 1946, pelo santo católico. É dividido em partes muito bem delimitadas, construídas cuidadosamente, seguindo propósitos igualmente diferenciados no que toca à literatura. Artifício de um dos maiores escritores do século 20.
Mas, antes de chegar em Francisco de Assis, vale a pena atentarmos para o esforço e cuidado de Hesse. Escrito quando ainda era muito jovem, seu autor já desejava ser escritor. Portanto, embora encontremos elementos éticos-estéticos marcantes em trabalhos como Demian, O lobo da estepe, O jogo das contas de vidro, entre outros, está evidente ali o esforço da criação literária, da tentativa de se firmar como escritor.
Isso não significa que Francisco de Assis esteja desprovido de muitos dos valores encontrados em obras posteriores de Hesse. Pelo contrário, permite um voo panorâmico sobre o processo criativo de um gênio da literatura mundial – e sobre a literatura como um todo. Isso porque, neste caso, Hesse tem diante de si um personagem mundialmente conhecido pelo universo cultural ocidental. Quase mitológico, Francisco de Assis é concebido no seio da moral cristã em seu processo de afirmação como religião. Portanto, é muito difícil, senão quase impossível, dissociá-lo da ideia central de constituição do indivíduo católico tal como o conhecemos que, a despeito da religião a ser seguida, mostra-se presente na formação da ideia de sociedade moderna de maneira geral.
Francisco de Assis é um mito. E, enquanto mito, depende de um contexto cultural para ter a sua ideia sustentada. Essa cultura funciona como o seu esteio, o eixo central para o entendimento de sua personalidade. Sua causa aos pobres – eis a ordem franciscana, uma das mais antigas do catolicismo – deve ser lida e compreendida segundo a premissa cristã que, definitivamente, é a cultura de seu tempo, os séculos 13 e 14. Apenas assim é que se compreende o valor do santo católico, em grande medida, como admiração, bastante contemplativa. Il poverello – traduzindo do italiano, o pobrezinho – tornou-se conhecido por uma austeridade para com a pobreza que, paradoxalmente, era assaz generosa, à medida em que tomava a ausência de bens como requisito natural para o cumprimento dos preceitos católicos-cristãos originais. Disso, resta a sua harmonia com a natureza, a forma mais perfeita de se estar em paz com Deus.
De fato, Francisco de Assis representaria, diante desse universo cristão arraigado na Idade Média, a expressão mais pura da natureza, obra divina, permitindo que ela seja traduzida como a responsável pela edificação da cultura. Sendo mais preciso, estamos diante da ideia de que é a natureza, enquanto expressão divina, quem constrói a cultura. Tanto é que o Renascimento, movimento iniciado ainda no século 14, demonstra o gigantesco esforço, nas artes, de representar a natureza em sua forma mais pura. Pegando a pintura como exemplo máximo, a descoberta da tinta óleo, feita por esses tempos, evidencia o grande avanço tecnológico sobre as obras feitas em têmpora, marcante no período gótico. A representação das cores torna-se, então, mais fiel a uma suposta realidade – aquela realidade criada e controlada por Deus.
Não por acaso, Giotto di Bondone, um dos primeiros artistas do Renascimento Italiano, foi um dos maiores pintores de Francisco de Assis – o representante mais vivo dessa natureza identificada com Deus. E, ainda, não por acaso escolheu este santo. Ao pintar Francisco, Giotto se esforçava na clara representação clara do divino em sua obra mundana. As inúmeras igrejas que guardam afrescos do pintor italiano também tinham em seu interior a maneira mais proeminente de educação de todo um povo. Era por meio dessas pinturas que toda uma educação, toda um modo de pensar, se firmava enquanto forma de vida. Elementos mitológicos são criados e reforçados, como no caso de Francisco de Assis.
Enfim, havia diante de Hesse, em 1904, mais do que a admiração por um santo em particular. Prevalecia o mito expoente de toda a humanidade. Como fazer, agora, a sua representação no plano da escrita, de uma obra literária? Percebemos o tamanho do desafio imposto ao escritor alemão. Porém, Francisco de Assis não deixa por menos.
Como mito, Hesse não poderia ignorar a lenda. Logo, apresenta, na primeira parte de sua obra, uma espécie de fábula. Nós, leitores, quando temos o livro em mãos, esquecemos momentaneamente do elemento biográfico. Vemo-nos aprisionados em uma narrativa lendária, calma, glamorosa, repleta de oralidade, a exaltar uma personagem específica, sempre cadenciando seus feitos de modo preciso, tomando-os de maneira fantástica e incrível. Aqui, Francisco de Assis desponta como um herói. Mas, devemos ir além.
Se, durante a Idade Média, como vimos, havia a edificação da cultura por meio da natureza, na Idade Moderna, o movimento é o oposto – Walter Benjamin deixa isso claro em A origem do drama trágico alemão. O indivíduo, então, mais do que nunca, é senhor de si. Os avanços tecnológicos o fazem ter um domínio absurdo sobre tudo aquilo que, antes, lhe fugia, como no caso da própria natureza. A cultura do tecnicismo apenas ilustra essa nova percepção sobre o mundo. Uma percepção a avançar, igualmente, na literatura.
Assim é que Hesse, embora faça uma apresentação da mitológica personagem de Francisco de Assis como fábula, não poderia deixar de lado os seus dilemas. Vindo de família de abastados comerciantes, de modo intermitente o escritor alemão centra a narrativa na dificuldade de Francesco Bernardone, o verdadeiro nome do santo da cidade de Assis, em abandonar toda a riqueza e vida de festas com a nobreza em nome da pobreza e proximidade com Deus por meio da natureza. Podendo ser um dilema existencial, é, sobretudo, moderno.
Os impasses de Francesco Bernardone são narrados no interior da fábula. Contudo, não se retém ao caráter fabuloso, lendário – não implicando enfraquecimento do mito, mas, antes de qualquer coisa, permitindo uma leitura moderna. Assim é que Hesse apresenta um personagem espetacular da Idade Média com matizes de modernidade. Pensando em Hesse, assegura-se que a opção por este caminho é intencional.
Tal intencionalidade se faz ainda mais evidente quando tomamos como referência a segunda parte de Francisco de Assis. Trata-se de um capítulo sumamente descritivo, baseado em documentos constantemente mencionados pelo próprio autor. O texto, nesse caso, adquire um caráter monográfico – não sendo menos belo por isso. A terceira parte, “O jogo das flores: a infância de São Francisco de Assis”, tem toda a estrutura de um conto. Aqui, estamos diante da literatura em sua fase mais moderna, quando Hesse descreve a admiração do menino pela mãe, sua necessidade de brincar diante das obrigações mundanas e a “travessura” infantil para louvar o mundano, as festas, as brincadeiras – como quando arranca flores do pequeno jardim materno para presentear outras crianças. Mais mundano do que isso, mais comum do que isso, impossível.
O pequeno conto sobre a infância de Francisco de Assis já havia sido publicado no Brasil em O livro das fábulas, pela Civilização Brasileira. Foi escrito posteriormente à primeira parte da edição da Record, lançada agora. Pontua um episódio mínimo, comum, da vida de um santo tão celebrado pelo cristianismo ocidental. Humanizando ainda mais a personagem, aproxima o leitor, permitindo-lhes uma identificação não somente com o aspecto lendário, fantástico, impedindo que a leitura fique somente no encantamento da fábula ou no conhecimento documental, conduzido pelas duas primeiras partes.
Enfim, para terminar, Francisco de Assis nos premia com um ensaio de Fritz Wagner, especialista no autor alemão, na última parte do livro. No que toca a Hesse, estamos diante do cuidado de um Francisco que apresenta o mundo como algo sagrado, sem, contudo, se restringir ao extraordinário. Em uma visão geral, o santo é desnudado como alguém livre do marcante dogmatismo cristão. Isso, no princípio do desencantado século 20, durante o período pré-nazista, é fundamental. Hoje, imprescindível.
SÃO FRANCISCO DE ASSIS
De Herman Hesse
Tradução de Kiristina Michahelles
Record
128 páginas
R$ 39,90
*Faustino Rodrigues é jornalista e professor de Sociologia na UEMG, colaborador do Estado de S. Paulo, Rascunho, revista Cult, entre outros
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