segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O colecionador de lágrimas

domtotal.com

Há dois caminhos para chegar à casa do vizinho: um deles é caminhar alguns passos; o outro, é dar a volta ao mundo


A infância de Piópi acabou naquele dia. O menino que voltou para casa tornou-se adulto no caminho
A infância de Piópi acabou naquele dia. O menino que voltou para casa tornou-se adulto no caminho
Marco Lacerda*
Naquele sábado, Piópi brincava de tardinha em frente à sua casa, junto a um tropel de meninos. Era um tempo em que a criançada aprendia a correr antes mesmo de saber andar. Por causa da chegada de um circo ao bairro, a euforia se alastrou pelo quarteirão. Os meninos voavam feito loucos e brincavam embalados pelas trombetas de uma música angelical que parecia vir do céu e só eles ouviam.
De repente, ouvem-se gritos vindos da casa de Piópi. Cessa o burburinho dos meninos. Os transeuntes que passavam a caminho do circo param para assistir à cena que transborda pelas janelas escancaradas: um homem com a camisa aberta avança enfurecido sobre uma mulher, desfechando-lhe golpes violentos.
– Quem são essas pessoas brigando dentro da sua casa, Piópi? – pergunta um dos meninos que brincavam na rua. Uma aglomeração forma-se diante do portão. Todos olham, apontam.
– Cadê meu pai? Cadê minha mãe? – grita Piópi aterrorizado. 
Cobrindo o rosto com as mãos, a mulher tenta se proteger da agressão. Grita, pede socorro em vão.
– O que fizeram com meus pais? – berra Piópi sem ouvir resposta. A cena foi como um terremoto: durou um instante, mas quando passou deixou tudo em ruínas.

O pai e a mãe de Piópi eram os protagonistas daquele espetáculo de violência. Piópi tenta caminhar até a casa do vizinho, seu Benjamim, que ficava ao lado da dele, para pedir ajuda. Rios de lágrimas escorriam pelo seu rosto de menino enquanto ele lutava para abrir caminho entre a multidão que interditava a área. Agarra e puxa as pessoas pelas pernas, que era o mais alto que suas mãos conseguiam alcançar. Ninguém sabia que ele era filho daquele homem e daquela mulher. Piópi queria salvá-la dos golpes que recebia e salvá-lo por os estar infligindo - ele, um homem devorado pelo ciúme, que desconfiava da própria sombra por temer que ela roubasse a mulher que tanto desejava, mas não sabia amar.
Então, seguindo uma geografia só possível na imaginação de um menino, partiu em direção oposta, como se estivesse fugindo, mas na verdade indo em direção à casa de seu Benjamim pelo caminho inverso. Correu durante muito tempo numa velocidade muito além das possibilidades dos seus quase sete anos, ainda ouvindo os gritos da mãe ecoando no ar.
Atravessou quarteirões escuros e desabitados de chão batido, sempre correndo, os gritos ficando distantes, lá longe a música do circo. Até que deu de frente com o dono da mercearia, que vinha em sentido oposto. Ele reconheceu Piópi e o deteve: Onde é que o menino vai com tanta pressa? Esbaforido, Piópi tentou explicar, mas não foi compreendido. Ele precisava dar a volta ao mundo para chegar à casa do vizinho e pedir auxílio.
O dono da mercearia o pegou pela mão e o levou de volta para casa. A infância de Piópi acabou naquele dia. O menino que voltou tornou-se adulto no caminho. Naquela noite, deitado numa cama que nunca mais foi sua, chorou tapando a boca com as duas mãos para não ser ouvido. Dormindo com um olho enquanto vigiava com o outro, passou a acompanhá-lo uma angústia que furava-lhe o peito como um prego, uma sensação irremediável que começava ao anoitecer, assaltava-o durante o sono e prolongava-se noite adentro até as luzes da manhã penetrarem pelas frestas da janela.
O caminho de Piópi desviara-se por um atalho e, aonde quer que ele fosse, estaria sempre em busca de alguma beleza para compensar a feiura daquela noite que ficaria guardada para sempre dentro dos seus olhos. Sete anos de idade é cedo demais para virar um adulto, sempre a olhar a vida com a visão nublada pelo horror daquela cena. Aos poucos brotou nele o medo, sempre muito bem disfarçado, e um sentimento de abandono que acabaria por transformá-lo num mendigo de afeto a quem bastava um pouco de atenção para sentir-se acariciado.
A família de Piópi mudou-se do bairro e nossos caminhos tomaram rumos diferentes. Ouvi dizer que ele nunca casou, talvez pelo temor de ver repetir-se em sua vida a mesma tragédia conjugal de seus pais. Nunca tive uma amizade tão grande como a daquele amigo que fiz ainda pequeno, aos oito anos. Sinto saudade dele até hoje.
A última vez que o  vi, muitos anos depois, foi na sua festa de formatura no curso de Engenharia. Alheio a tudo ao seu redor, estranho numa festa que deveria ser dele também. Por um momento pensei em me aproximar e abraçá-lo, demonstrar o amor que sempre nos uniu pela vida afora. Mas amor não basta para salvar quem se ama.  No meio do baile, quando todos celebravam, bebiam e dançavam, Piópi vestiu o paletó e abandonou a festa sem ser notado. Com as mãos nos bolsos e a gravata desfeita, caminhou por ruas desertas rumo a ... parecia movido pelo desejo recôndito de dar a volta ao mundo em busca da casa de algum vizinho que lhe mostrasse o caminho de volta pra casa. Sentou-se num banco da praça deserta e um oceano de lágrimas rolou por sua face. Eram tantas as lágrimas que o impediram de ver a lua resplandescente no céu, brilhando só para ele. A lua tem dessas coisas: não brilha apenas para os que são amados, brilha também para os que não são.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total

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