A vinheta do jornal soou como um toque de recolher e os dois riram depois de pedir a conta ao mesmo tempo

Falavam sobre a chuva numa tímida cumplicidade, quando ouviram o grito de mulher (Agência Brasil)
Sentado atrás da garrafa de cerveja e um copo, contou tudo de modo natural, sem alterar a voz, sem qualquer gesto capaz de demonstrar indignação, revolta ou surpresa. Aceitava conformado, mesmo deixando evidentes as diferenças em relação ao irmão assassino. As palavras ditas naquele boteco não carregavam peso nem a dimensão de seu absurdo. Apenas escancaravam a realidade daquela cidade triste.
O ambiente estava iluminado por lâmpadas pálidas e mudava de tom quando o dono do bar trocava os canais da TV. Um programa descrevia a morte estúpida de um adolescente em uma rua movimentada, baleado por causa de um celular. Simpático e discreto, o dono voltou a acompanhar a novela para fazer de conta que não ouvia a história do cliente.
“Tem gente que é ruim, faz por pura maldade”, disse o pedreiro. O outro, veterano bancário, ficou quieto e igualmente protegido atrás de uma cerveja e um copo. Seu olhar, porém, foi de interesse e desatou o resto do caso. “Uma vez, perguntei ao meu irmão porque ele tinha matado um sujeito e ele respondeu: ‘Porque me deu vontade’. Meu irmão era ruim”, falou.
O pedreiro relatou que o dito cujo morreu de morte matada, todo cheio de bala. “Foi ele que escolheu essa vida”, completou. Depois disse ser o único da família que pegava no batente e que os outros irmãos não gostavam de trabalhar e estavam “tudo metido em bandidagem”.
O colega de bar piscou os olhos, como se também aceitasse, conformado, a tragédia narrada no botequim. Pediu outra cerveja, afundando num torpor líquido e televisivo. No bar, os únicos sons eram os diálogos melodramáticos, juras de amor e promessas de felicidade eterna que saíam da TV.
A cabeça do bancário fervia. Cenas de tiroteios e execuções, mulheres de roupas pretas em prantos sem fim. Sentia-se impotente e buscava entender a indiferença diante de tal revelação – do assassino, do pedreiro que narrava o crime, de si próprio.
Ao pensar sobre aquele homem e se perguntar como ele era capaz de relatar de maneira tão banal um fato tão grave, o bancário finalmente notou que se tratava de uma pessoa singular. Não sabia quase nada sobre o pedreito, mas qualquer um poderia deduzir já que falava com orgulho sobre seu trabalho. Porque não sucumbiu ao crime como os irmãos? O que faz um diferente do outro?
A vinheta do jornal soou como um toque de recolher e os dois riram depois de pedir a conta ao mesmo tempo. Na porta do bar, falavam sobre a chuva numa tímida cumplicidade, quando ouviram o grito de mulher. Depois, mais gritaria.
Por instinto, ambos correram em direção aos sons e se depararam com uma senhora caída. Três pessoas a ajudavam a levantar enquanto um jovem virava a esquina correndo. Esperaram a senhora se acalmar, a polícia chegar e, lado a lado, subiram a rua desejando o merecido descanso.
Após alguns metros, antes de se despedirem, o pedreiro apontou para a esquina e disse ao bancário: “Irmão meu”. E seguiu seu caminho de cabeça baixa.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista. Trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional nos jornais 'O Tempo' e 'Estado de Minas', onde foi editor do caderno Pensar. É diretor de redação do 'Dom Total'
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