domingo, 23 de fevereiro de 2020

'Bolsa Família', pobreza e migração no Brasil e na América Latina

A situação das famílias de baixa renda piora ainda mais com a estridente desigualdade social que se verifica na economia globalizada em geral
Programa surgiu para transferir uma renda nacional para os extratos mais pobres da população
Programa surgiu para transferir uma renda nacional para os extratos mais pobres da população (AFP)

Engrossa cada vez mais no Brasil a fila à espera desse benefício. De acordo com as estimativas, ao redor de um milhão de famílias aguardam o atendimento. Criado para transferir algumas migalhas da renda nacional para os extratos mais pobres da população – menos de R$ 170 por pessoa – o programa “Bolsa Família” passou de governo para governo, o que significa que representa um fator de distribuição de renda, ainda que mínimo. Certo, o programa apresenta uma série brechas, contradições e falta de fiscalização, dando margem a práticas escusas de oportunismo e tráfico de influência. Tanto que a contrapartida das famílias beneficiadas, em especial a frequência à escola e os cuidados com a saúde, deixa muito a desejar. Porém, substituir um modelo de fiscalização sério e responsável por um bloqueio do programa não parece ser a solução mais adequada. O quadro de torna ainda mais grave no contexto atual de acentuado desemprego e subemprego, do crescimento do trabalho informal e da precariedade das condições reais de trabalho.

A situação das famílias de baixa renda piora ainda mais com a estridente desigualdade social que se verifica na economia globalizada em geral. Na América Latina e no Brasil, em particular, a distância entre os que ocupam o pico da pirâmide socioeconômica e os que habitam a base vem se aprofundado progressivamente com a crise prolongada. Já é conhecido e notório o fato de que, enquanto a renda tende a crescer para a faixa de 1% ou de 10% da população mais rica, diminui em proporção inversa para aqueles que se encontram entre os 80% ou 90% mais pobres. Desnecessário repetir que essa assimetria gritante e escandalosa tem consequências danosas para todo o continente e seus respectivos países.

Os resultados são evidentes a olho nu. Basta verificar o aumento das pessoas (e famílias) em situação de rua, com destaque para as grandes cidades, capitais e metrópoles; o fluxo cada vez mais intenso de migrantes e/ou refugiados em busca de novas oportunidades, como as caravanas da América Central em direção à fronteira entre Guatemala e México e entre México e Estados Unidos; os números de profissionais de várias categorias, às vezes com curso superior, dispostos a aceitar os “bicos” de toda sorte; as diversas formas de exploração sexual e/ou trabalhista das crianças, jovens e adolescentes de ambos os sexos; a sobrecarga de trabalho para os poucos “privilegiados” que ainda mantêm um emprego com carteira assinada; a remuneração inferior para o trabalho feminino em iguais condições do masculino...

Sempre tendo em vista o contexto das imensas disparidades sociais que marcam a população de nossos países latino-americanos, convém chamar a atenção para os riscos que rondam os povos indígenas, as comunidades ribeirinhas e quilombolas da região amazônica, como demonstra a Exportação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, do papa Francisco. Outro olhar atento volta-se para os imigrantes indocumentados e a população afro-descendente. Não é raro ver seus representantes utilizados em serviços árduos e pesados, “análogos à escravidão”, eufemismo que dissimula os casos de escravidão pura e simples. Aqui o olhar se estende pelas regiões fronteiriças, onde centenas e milhares de migrantes são recrutados temporariamente para as safras agrícolas, outros literalmente se escondem nos porões sórdidos e insalubres da indústria têxtil, ou ainda no chamado trabalho doméstico ou autônomo, uma forma de fazer recair sobre os ombros dos trabalhadores e das trabalhadoras todo o ônus dos encargos sociais.

Sacrificar o programa Bolsa Família, em lugar de criar mecanismos eficazes de fiscalização, retrata o descaso das autoridades para com a “questão social”, além de agravar o pesadelo de centenas de milhares de famílias brasileiras.

Instituto Humanitas Unisinos

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