Manuel Ballester | Mar 11, 2020
O coronavírus causou um aumento no interesse (ou pelo menos nas vendas de) A peste (1947) de Albert Camus (1913-1960). Mas por quê?
Ébom ver que, diante de um problema, as pessoas se voltem para a grande literatura (que é sabedoria condensada, tradição escrita) para se orientar.
Camus, com seu grande livro sobre uma epidemia – A peste – pode nos ensinar algo, isso não está relacionado à dimensão da saúde. Nem à econômica.
O que “A peste” retrata é, antes, uma questão antropológica. O começo se refere a como é o homem moderno. Depois, mostra como essa mentalidade moderna é afetada pela peste.
O homem moderno é problemático para si mesmo. Assim, por exemplo, de maneira estrondosa, Nietzsche o caracteriza como um “animal doméstico manso”. Saint-Exupéry fala do “formigueiro humano”.
Camus, em “A peste”, vê o homem moderno como uma mistura equilibrada de cigarra e formiga: “Sem dúvida, hoje nada é mais natural do que ver as pessoas trabalhando de manhã à noite e depois escolher, entre o café, o jogo e conversa, como perder o tempo que resta para viver”.
O tom do livro busca uma objetividade sóbria. O problema é – interpretado literalmente – um problema de saúde. A narrativa segue de perto o Dr. Rieux, já que “durante todo o tempo da praga, sua profissão o coloca no transe de frequentar a maioria de seus concidadãos e recolher as manifestações de seus sentimentos”.
Em nossa vida tão moderna, regida por hábitos e costumes, de repente algo se rompe, algo quebra todas as rotinas.
Ninguém acredita que uma sociedade como a nossa possa ser atingida por pestes, doenças ou, em outras palavras: por algo que não podemos controlar.
“Houve tantas pragas no mundo quanto guerras, e mesmo assim pragas e guerras pegam as pessoas sempre de surpresa”.
A peste não é algo planejado. Portanto, é vista como injusta. E ainda mais injusta quando atinge um inocente.
Religião. Deus. Um Deus que permite a morte de um inocente, um Deus que cria um mundo assim, pode ser bom, pode existir? Todos nós não vamos morrer? – prosseguem as questões levantadas pelo livro.
De qualquer forma, o que fazer? O médico tenta deter a peste cientificamente, mas a dor, o isolamento, a expectativa certa de uma morte próxima não são meros assuntos médicos.
Assim, o homem moderno vive alienado, sem saber se vale a pena viver ou não e, no contexto médico, ser salvo ou não. Se todos vamos morrer, quanto esforço vale?
E essa situação que nos tira de nossos hábitos apenas mostra que o significado da vida já deveria ter sido esclarecido. Agora não temos tempo para pensar. Ah! disse Rieux, “não se pode curar e saber ao mesmo tempo”. Então, vamos curar o mais rápido possível, é o que é urgente.
Quando o mal ocorre, abala a existência pacífica, torna visível o desenraizamento e é percebido como injusto. No coração do livro, há um personagem, Tarrou, que dá uma interpretação alegórica à peste.
Tarrou entende que somos todos pragas, que todos transmitimos o mal. E, portanto, ele procura o caminho para a paz ou, nos seus próprios termos: “o que me interessa é saber como me tornar santo”.
A peste, o mal, colocou a população em uma situação de urgência, exaustão e indiferença, mas, em qualquer caso, longe da autossuficiência do formigueiro. Ali emergem as reais necessidades humanas, o verdadeiro significado.
No meio da epidemia, Rieux, o médico cansado, entra em cafés lotados duas vezes: ele parecia estúpido ao fazer isso, mas sentia urgente “a necessidade de calor humano”.
Durante a peste, todos se tornaram refugiados. Isso a partir do momento em que a peste obrigou ao fechamento dos portões da cidade. Eles viveram apartados, foram amputados pelo calor humano.
Sentimos falta do que nos falta radicalmente: ternura, calor humano, pátria, lar. E é isso que queremos: voltar para casa, para o lugar a que pertencemos, porque existem nossas raízes e nossa vida, que consiste em amar e ser amado.
Se o desejo de ternura, o desejo de amar e ser amado está tão na raiz do ser humano, o remédio para o desenraizamento não estará lá também?
Assim, o sentido da vida estará relacionado com a abertura, com nos deixarmos abraçar por alguém que nos ama acima de tudo.
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