segunda-feira, 23 de março de 2020

Covid-19 e a chacoalhada na teologia litúrgica

Virtualização da religiosidade litúrgica nos tempos de exceção precisará ser revista por teólogos liturgistas
Determinação de celebrações na ambiência virtual legitima a virtualização da religiosidade litúrgica
Determinação de celebrações na ambiência virtual legitima a virtualização da religiosidade litúrgica (TV Pai Eterno)
Felipe Magalhães Francisco*

Sacramento: a graça invisível, atuando no sinal sensível. É assim que, classicamente, definimos o que seja sacramento. Os sacramentos exigem símbolos, pois é da realidade sensorial que experimentamos a graça divina, que é imaterial. Sacramentos pressupõem o corpo, pois é pelos sentidos, simbólica e sacramentalmente, que fazemos a experiência da graça salvífica que nos alcança. Importa destacar que somos nós, seres simbólicos e de linguagem, que precisamos do sacramento para apreender a experiência com a graça salvífica. A graça, por sua vez, não tem critérios para que seja dispensada.

Os liturgistas temos acompanhado com um olhar crítico a propagação da virtualização da liturgia. Tornou-se um jargão, já, o que insistimos em repetir: missa televisionada não tem valor sacramental, mas apenas valor catequético. Se não há corpo no trato com o simbólico ritual, não há sacramentalidade, pois. A constituição pastoral Sacrosanctum Concilium insiste que a participação dos fiéis na liturgia se dê por ritos e preces. Tanto assim o é, que os enfermos impossibilitados de se reunir com a comunidade celebrativa, recebem a comunhão, administrada por ministros que celebram, nessa ocasião, a Palavra.

Mas são tempos de covid-19 e a prudência exige o isolamento. As dioceses com senso de responsabilidade decretaram a celebração da eucaristia, com a presença mínima de fiéis, bem como a transmissão, por todos os canais possíveis, das celebrações, para que os fiéis possam acompanhar de suas casas. Rezar no silêncio do quarto, tal como ensinou Jesus, e cultivar a convivência orante com a família, resgatando a concepção da Igreja doméstica, tão importante. Nutrir a religiosidade no âmbito individual e familiar é o que temos para o momento.

O contexto é de exceção. Tão logo a crise sanitária passe, e já não corramos mais riscos, a reunião da comunidade para viver, nutrir e expressar sua fé se tornará, novamente, possível e praticável. Mas, o precedente está aberto: a determinação dos bispos para que as celebrações ocorram na ambiência virtual, de alguma forma legitima o que estava já sendo feito, fora do contexto da crise, por muitos canais católicos, da virtualização da religiosidade litúrgica, sob o argumento de usar as mídias sociais em prol da evangelização.  

No contexto da exceção, não é momento para questionarmos a sacramentalidade de uma liturgia em ambiência virtual. O precedente, no entanto, aberto por esse contexto, será base para a propagação, fora dessa crise, da virtualização da liturgia. Aí, então, a teologia litúrgica deverá responder a esse novo contexto. Os liturgistas continuaremos a insistir na teologia vigente, de só compreendermos a sacramentalidade experimentada pelo corpo, no envolvimento com os ritos, ou teremos, diante da ciência litúrgica, novas perspectivas de compreensão sacramentais?

A liturgia católica está em crise há muito tempo, dado que a reforma litúrgica consequente do Concílio Vaticano II não foi bem executada e efetivada na qualidade merecida e exigida. O subjetivismo com traços psicossomáticos que tomou conta da religiosidade cristã, entrando em cheio na ação litúrgica, já tem desafiado, e muito, a criatividade teológica de liturgistas. O covid-19, agora, dá uma chacoalhada forte na teologia litúrgica que, colocada à prova, precisará refletir, de modo atualizado e criativo, o que significa, nesses nossos tempos de revoluções tecnológicas, o significado de sacramentalidade.

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com

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