quarta-feira, 11 de março de 2020

Vale: inferno na vida do povo e da natureza?

Por territórios livres de mineração e da peste da ganância, seguimos lutando
Imagem de um capacete da Vale tirada 20 dias após a tragédia na mina Córrego do Feijão.
Imagem de um capacete da Vale tirada 20 dias após a tragédia na mina Córrego do Feijão. (Douglas Magno/AFP)
Por Gilvander Moreira

A realidade demonstra que a mineradora Vale mente, engana, pressiona quem se opõe aos seus interesses, faz propaganda enganosa, coopta lideranças e políticos, coloca o estado de joelhos diante dos seus interesses de acumulação de capital e, assim, a mineradora tem sido o inferno para o povo e para a natureza. Dia 05 de março de 2020, aconteceu em Catas Altas, MG, audiência coordenada por um representante da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Semad), do Governo de Minas Gerais. Tinha sido anunciado que a audiência seria para discutir a reabertura das minas de Tamanduá e Almas, da mineradora, mas, estranhamente, a Vale apresentou projeto de ampliação da mina de São Luiz, do Complexo de Fazendão. A empresa pretende expandir a cratera da mina de São Luiz, que passaria dos atuais 135,71 hectares para 215,67 hectares - um aumento de 79,96 hectares.

A audiência foi um circo de horrores. A Vale montou o espaço com uma grande tenda, com centenas de cadeiras alugadas. Na entrada, moças do cerimonial colhiam assinaturas; seguranças privados revistavam as pessoas com detectores de metal; saquinhos de lanche e copos com água ficavam disponíveis em uma mesa, para quem quisesse. Um grande número de policiais militares e seguranças privados acompanharam a audiência que foi, de fato, um espetáculo de horrores. 

Por que e para que tantos policiais e seguranças privados? Se esse projeto fosse para gerar vida para a comunidade, não precisaria esse temor. Entretanto, como já se sabe, é um projeto de morte que tentarão empurrar goela abaixo do povo, convocando o braço repressor do estado para inibir e controlar a imensa indignação e revolta que as pessoas da comunidade sentem. 

Eram quinhentos participantes, entre os quais cerca de trezentos funcionários da Vale trazidos com o propósito de coibir questionamentos ao projeto de ampliação da mina. Uniformizados, sentaram à frente de todos. Muitos pareciam não saber que: a) o uniforme verde da Vale está sujo de sangue; b) funcionam como uma máquina de guerra contra o povo, a natureza, todos os seres vivos e as próximas gerações, pois vão deixando terra arrasada por onde passam.

Sob pagamento da Vale, a empresa Total Ambiente apresentou estudos de impacto ambiental afirmando nas entrelinhas que, de fato, a ampliação da mina de São Luiz causará uma série de impactos socioambientais irreversíveis. “Na área foram cadastradas 67 nascentes”, que serão secadas certamente; “na área há sete cavernas”, que serão destruídas com anuência cúmplice do Cecav/ICMBio; “o lençol freático será rebaixado”, o que secará inúmeras nascentes na região e causará falta d’água. E  nesse rol de mentiras alardeadas, alegam que tudo será mitigado e “a Vale monitorará”. 

Dá nojo ouvir os(as) diretores(as) da Vale tentarem defender o indefensável. Nem eles acreditam no que estão falando. Falam, porque são empregados, para receberem seus salários e não serem demitidos. Atuam como porta-vozes de um projeto de morte. Não sentem vergonha de trabalharem em uma empresa assassina? A consciência dos diretores da Vale não os acusa quando colocam a cabeça no travesseiro? É justo ganhar um salário que custa o sangue do povo e a degradação da natureza?

Ao manterem em funcionamento uma máquina de guerra como a Vale, estão desonrando os quase 300 mortos pelo crime/tragédia da Vale e do estado em Mariana e em Brumadinho. Abusam da linguagem e agridem o bom senso ao dizer que “a Vale busca trabalhar em parceria com a comunidade”, que “o diálogo é o caminho”, que “o lema da Vale é a vida em primeiro lugar”. 

Ouvir isso é trágico e não apenas cômico, pois a realidade demonstra exatamente o contrário: o lema da Vale é o lucro e a acumulação de capital a qualquer custo, sem diálogo, submetendo as comunidades à intermináveis violências. Não basta as quase trezentas pessoas assassinadas pela mineradora e pelo estado em Mariana e Brumadinho, sepultadas vivas? Até quando vão insistir em mais do mesmo? Será preciso matar 10 mil, 50 mil? Minerarão até não ter mais nem uma gota d’água para beber nem para viabilizar a exploração minerária?

É um absurdo a Vale e o governo de Minas Gerais continuarem insistindo em ampliar a mineração no estado. Não podemos tolerar a reprodução e ampliação desse projeto de morte que só produz “terra arrasada”. Temos que discutir a redução de 95% da mineração em Minas Gerais e no Brasil. 

Lutar por territórios livres de mineração tornou-se uma necessidade para garantir o mínimo de condições objetivas de vida para o povo, para os seres vivos e para as próximas gerações. Continuar ampliando a mineração significa cuspir no rosto de todos os mártires da Vale e do estado e pavimentar o caminho para continuar reproduzindo os crimes continuados. 

Em alto e bom som, várias pessoas humanizadas bradaram denunciando as ações da Vale, durante a audiência controlada: “Basta! A Vale não tem caráter”; “A Vale só mente!”; “O Povo não é capacho da Vale, que espiona o povo no Morro da Água Quente, em Catas Altas, MG"; "Tudo o que a Vale fala é mentira. A Vale está matando o povo do Morro da Água Quente, em Catas Altas"; "Vale não pode fazer em Catas Altas o que fez em Barão de Cocais: terror, expulsão de comunidades e morte”; “A Vale só mata”; "Na Vale, vi trabalhador chorando quando percebeu o que estava fazendo"; “Muitos trabalhadores da Vale estão com depressão”. Quem assistir aos vídeos da audiência em Catas Altas, se for pessoa idônea, humanizada, concluirá que a Vale não tem o direito de seguir ampliando a mineração, que significa ampliar a devastação, os crimes e causar mortandade.

Catas Altas é um município abençoado, munido de um patrimônio natural, paisagístico, arquitetônico e imaterial inigualável. Possui, inclusive, diversos sítios históricos e ambientais tombados e inventariados em nível federal, estadual e municipal. É lá que está grande parte da Serra do Caraça e toda a sua biodiversidade encantadora. Lá o Santuário do Caraça atesta há mais de 250 anos a dimensão espiritual da região.

Os lugares onde as mineradoras se instalam são verdadeiros paraísos naturais, culturais e arqueológicos. Mas após a sua invasão, inicia-se um processo de usurpação, que sacrifica no altar do deus mercado a dignidade humana e a dignidade da mãe terra, da irmã água, da flora, da fauna e extinguem-se as condições de vida para as próximas gerações. 

O crime da Vale e do estado também foi um atentado contra o Espírito do Deus da vida. Da perspectiva bíblica e teológica, é preciso recordar que toda a criação – os seres humanos, a fauna, a flora e os biomas - é sagrada. A terra é mãe e a água é irmã. 

“Água, fonte de vida” foi o lema da Campanha da Fraternidade de 2004. “O Espírito de Deus está nas águas”, diz o segundo versículo da Bíblia (Gênesis 1,2). O Espírito vivificador não apenas paira sobre as águas, mas permeia e perpassa as águas. Logo, matar as nascentes, os córregos e os rios é cometer um pecado contra o Espírito Santo, pecado capital que não tem perdão. 

Integrantes do sistema capitalista, os megaprojetos de mineração são projetos satânicos e diabólicos, que, como o dragão do Apocalipse (Apocalipse 12), cospe fogo e devora tudo o que encontra pela frente. Antes de serem cooptadas pelo Império Romano e pelo imperador Constantino, as primeiras comunidades cristãs se regiam por um Código de Ética que alertava as pessoas que trabalhar em instituições que reproduzissem o sistema escravocrata do império romano era algo imoral. Um cristão não podia, por exemplo, ser soldado e nem militar do império romano, pois estaria, na prática, reproduzindo um sistema idólatra. É ético trabalhar para uma empresa que reproduz um sistema de morte?

Tiro o chapéu para os/as militantes do MAM (Movimento Popular pela Soberania na Mineração) que não estão medindo esforços para estar ao lado dos povos que estão se levantando e metendo o "pé no barranco" para resistir contra a máquina de triturar vidas das mineradoras.

Benditos os prefeitos que se negam a conceder Declaração de Conformidade para projetos minerários devastadores. Malditos os prefeitos que continuam ajoelhados diante do poderio econômico e político das mineradoras lideradas pela Vale. Por territórios livres de mineração e da peste da ganância, seguimos lutando. Basta de minério-dependência. A vida exige respeito.

Gilvander Moreira
é frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; professor de “Direitos Humanos e Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH, em Belo Horizonte, MG, autor de livros e artigos.

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