sexta-feira, 17 de abril de 2020

A crise do papa Francisco

Como cada um de nós, o pontífice começa a refletir sobre o que fazer nos pós-pandemia. Frente à crise, qual resposta papado articula para o futuro?
Papa Francisco preside Via Crucis realizada no Vaticano na ultima sexta-feira (10)
Papa Francisco preside Via Crucis realizada no Vaticano na ultima sexta-feira (10) (Yara Nardi/Reuters)
Mirticeli Medeiros*

O que nos aguarda depois dessa pandemia? Sem dúvida, é o questionamento que muitos fazem neste momento. Entre negacionistas e constatações da gravidade da doença “desconhecida”, as tensões e as incertezas sobre o dia de amanhã. Como sairemos dessa? Como os países irão se reerguer? De acordo com relatório divulgado recentemente pelo FMI, uma recessão mundial semelhante à depressão de 1929 está por vir. Há quem compare o impacto da pandemia àquele provocado pela segunda guerra mundial. Há quem, no silêncio do seu quarto, simplesmente reza para que o pesadelo termine o quanto antes.

E o papa Francisco, em meio à tantas previsões apocalípticas, traça uma espécie de plano de crise. A Igreja Católica começa a pensar numa estratégia para erguer um “hospital de campo” capaz de sanar as feridas causadas por esse inimigo invisível. O pontífice está em “crise”. Porém, um verdadeiro cristão como ele sabe que na crise se encontra a chave da renovação. “Penso em como terei que agir como bispo de Roma quando passar essa pandemia”, disse ele numa entrevista recente.

Isso nos mostra que o catolicismo se prepara para enfrentar uma mudança de época. Sim, aquela fase de transição dura e inesperada que levou a humanidade, em várias épocas, a rever metas e a traçar novos rumos. Jacques Le Goff em seu livro Em busca da Idade Média, indaga: “O homem de 1492, que pegou no sono no dia 31 de dezembro, sabia que acordaria em 1 de janeiro de 1493 dando boas-vindas ao Renascimento? [...] Ninguém avisa que estamos entrando numa época e saindo de outra”.

Confira também:

Campanha de doações para moradores de rua
Meu Dia com Deus
A verdade é que estamos todos vulneráveis: do material ao emocional. Estamos no mesmo barco não do “salve-se quem puder”, mas do “salvemo-nos uns aos outros”; ou caso contrário, “não sairemos dessa”, como diz o próprio papa. Que tipo de transformação esse Covid-19 irá provocar? Essa inquietação que coloca em crise a cada um de nós - e, como vimos, até líder máximo da Igreja Católica - foi a mesma que moveu eras.

Olhando para a história da Igreja, esses momentos de crise significaram um redimensionamento do papel da Igreja Católica. O apelo de retorno à essência da vida cristã por parte de Francisco de Assis, no contexto da sociedade pós-feudal no século XIII, foi uma reviravolta. Essa “coragem profética” do religioso italiano pôs as bases para uma renovação espiritual sem precedentes na trajetória do catolicismo.

Algumas décadas depois, foram justamente as ordens mendicantes que trabalharam na linha de frente do enfrentamento da peste negra. Tais religiosos eram criticados fortemente pela “elite católica”, mas defendidos por Clemente VI. Enquanto isso, a autoridade papal sofria um declínio de prestígio entre os fiéis, mas o fervor religioso curiosamente crescia de vento em polpa, como observa o historiador inglês Philip Ziegler em seu livro The black death.

O apelo de papa Francisco à devoção popular em tempos de crise, também significa preparar os fiéis para uma mudança inevitável, que poderá impactar até a vivência religiosa. Papa Francisco que por si só já revoluciona o papado - do ponto de vista institucional -, agora se prepara para a “fase dois” dessa transformação. Impulsionado pela pandemia que coloca o mundo de joelhos, hora de reafirmar o seu papel como papa: líder global que convocará o mundo para a solidariedade recíproca, alguém que convencerá a humanidade a reconhecer a crise de valores na qual está imersa, o líder religioso que convocará os cristãos de todas as confissões a serem os protagonistas dessa reconstrução?

Com o povo “espiritualmente preparado”, munido de fé e esperança para enfrentar o que virá, a Igreja Católica, mais uma vez, se lança para observar “os sinais dos tempos” e redefinir uma linha de ação. A mensagem cristã agora deve ser capaz de atender aos anseios do homem atingido brutalmente por um monstro que, até agora, não perdoou ninguém.

Em meio às guerras religiosas do século XVI, foi convocado o Concílio de Trento. O Concílio Vaticano I favoreceu os esforços em prol do reconhecimento da autoridade moral do papado no século XIX, abalada pelas ideologias impostas pela cultura contemporânea. Por cima dos escombros deixados pela guerra fria, o Concílio Vaticano II. E Francisco, o que fará? Convocar um concílio? Um sínodo extraordinário? É o que veremos nos próximos meses.

Receba notícias do DomTotal em seu WhatsApp. Entre agora

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras

Nenhum comentário:

Postar um comentário