sexta-feira, 24 de abril de 2020

Os símbolos cristãos e sua profanação política

E a história se repete: imagens sagradas usadas para sustentar programas de governo que não condizem com o próprio cristianismo
'Sagrado coração de Jesus', de Pompeo Battoni
'Sagrado coração de Jesus', de Pompeo Battoni (Domínio Público)
Mirticeli Medeiros*

O cristianismo e sua simbologia. Desde os primórdios, os cristãos expressam, através da arte, sua espiritualidade e os seus costumes. Foi através de muitas gravuras dos séculos 3 e 4 que descobrimos como essas pessoas se organizavam, promoviam a caridade, partilhavam a mesa da Eucaristia.

A tradição de expressar a fé através das imagens sobreviveu ao movimento iconoclasta dos séculos 8 e 9, aos puritanos do século 17 e a tantas outras tentativas de esvaziar o seu sentido mais profundo: o de conduzir as pessoas à fé. Sim, à fé. Ao menos nas tradições cristãs que as veneram, essa é a motivação para mantê-las.

Na história da Igreja, identificamos que a “politização da fé”, que culmina num inevitável processo de institucionalização da religião cristã, começa com o imperador Constantino, no século 4. O teólogo brasileiro Leonardo Boff, no seu livro Igreja, carisma e poder, defende uma tese nada convencional, afirmando que essa institucionalização se deu ao passo que os primeiros cristãos começaram a desenvolver o cânone do Novo Testamento.

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Na Vita Constantini, a biografia do imperador Constantino, o autor, Eusébio de Cesareia, chega a duvidar da famosa “visão de Constantino”, dizendo “só acreditava na veracidade do ocorrido porque o imperador lhe havia narrado sob juramento”. De acordo com a tradição, essa manifestação divina, coroada pela famosa frase in hoc signo vinces - do latim, com este sinal vencerás - foi responsável pela vitória do imperador na batalha da ponte Milvio, em Roma, no ano 332 d. C. Tal evento teria sido responsável pela conversão do imperador e elevou o cristianismo ao status de religio licita - religião autorizada.

Controvérsias à parte, é bem verdade que a cruz de Cristo, símbolo do martírio de Jesus e de seus seguidores até então, foi transformada em baluarte de batalhas sem sentido. A cruz, revestida por uma áurea belicista, esteve à frente de cruzadas, expansões territoriais, invasões, matanças. E hoje, nas mãos de políticos, é mais uma vez violada. É instrumentalizada por pessoas cuja intenção não é a de alimentar a fé do povo. Um escárnio.

Alguém pode me dizer: “Você está julgando os nossos ‘políticos de bem’ ”. Respondo que o cristianismo que professo é aquele que me liberta da alienação. Ora, não é de hoje os símbolos cristãos são utilizados para levar adiante as mais variadas agendas políticas. Então, sim, ainda gozo do benefício da dúvida diante dessas situações que, para mim, ainda são contraditórias.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus - que hoje integra as mais belas iniciativas de devoção popular - fez parte dos “ritos de guerra” do primeiro grande conflito mundial, em 1917. E tantas outras belas devoções, que nasceram da fé e da esperança de um povo, reduzidas a pó através de discursos políticos e politiqueiros.

Sim, é tempo de defender os valores cristãos. Como também é tempo de defender-se desse neopaganismo que abraça o cristianismo de um lado, mas flerta com quem quer destruí-lo. Jesus disse que seria difícil distinguir o joio do trigo. Pois bem, a parábola do mestre é mais atual que nunca.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras

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