Com influência política garantida no Executivo e no Legislativo, religiosos buscam agora controlar Judiciário, analisa a pesquisadora Brenda Carranza
Mendonça assumiu o comando da AGU no início do governo Bolsonaro e passou a ser uma das principais referências jurídicas da bancada evangélica (Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr)
Rute Pina
O anúncio de André Mendonça, um nome “terrivelmente evangélico”, para chefiar o Ministério da Justiça consolida mais um passo do segmento religioso no sentido de levar sua influência às três esferas do Poder. Quem faz a análise é a pesquisadora Brenda Carranza, doutora em Ciências Sociais e professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Mendonça, doutor em Direito e servidor de carreira da Advocacia-Geral da União (AGU), foi anunciado como novo ministro da Justiça em publicação no Diário Oficial da União (DOU) na terça-feira (28). Ele substituiu o ex-juiz federal Sérgio Moro – cuja saída sob acusações de interferência de Jair Bolsonaro na Polícia Federal mexeu com o tabuleiro da política, na semana passada, e também com a popularidade do presidente, inclusive entre os evangélicos.
Em 2019, perguntado sobre quem seria indicado ao Supremo Tribunal Federal (STF) com a aproximação das aposentadorias dos ministros Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, Bolsonaro não citou nomes, mas declarou que o próximo ministro da Corte seria um “terrivelmente evangélico”, em suposta menção a Mendonça, que é pastor na Igreja Presbiteriana Esperança, em Brasília.
Mendonça assumiu o comando da AGU no início do governo Bolsonaro e passou a ser uma das principais referências jurídicas da bancada evangélica, participando de congressos como o da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), organização que faz lobby por “valores cristãos” no Judiciário. Ele aparece inclusive como conferencista do próximo congresso da Associação, que estava marcado para maio deste ano.
A nomeação de um nome amigo da Anajure vem após nota divulgada pela associação em repúdio a “interferência do presidente da república na direção-geral da polícia federal”. Moro também era muito próximo da Anajure, participando de conferências e, mais recentemente, de lives promovidas pela associação.
Em entrevista, a professora da PUC afirma que o anúncio do novo ministro mostra um aceno de Bolsonaro ao cumprimento das promessas feitas aos evangélicos, grupo que será fundamental, na análise de Carranza, para manter a coesão e governabilidade do governo no Congresso Nacional.
Mais do que isso, a nomeação do novo ministro da Justiça representa um passo do grupo religioso rumo à ocupação dos três poderes. O Legislativo viu o aumento expressivo de visibilidade da bancada da Bíblia em 2016; a influência no Executivo foi cravada com a eleição de Bolsonaro. E, agora, a busca dos evangélicos é pela influência no Judiciário. Mesmo que a pasta chefiada por Mendonça esteja dentro do âmbito do Executivo, a substituição de Moro deixa o advogado evangélico mais próximo, segundo ela, das vagas no STF até então aventadas pelo ex-ministro. A nomeação de Mendonça é fundamental para um projeto que “consolidando a imagem de que o Brasil é cristão”, diz a professora.
“Essa é a proposta de uma direita cristã: o aparelhamento do Estado, onde a moralidade cristã e os comportamentos e costumes sejam os inspiradores de legislações, políticas públicas que atendam a sua maioria societária, resume.
Graduada em Teologia pela Universidade Francisco Marroquim, na Guatemala, Carranza é autora do livro “Catolicismo midiático”.
Nesta entrevista ela também fala sobre o modelo de ocupação partidária e influência política dos evangélicos em países da América Latina e analisa o posicionamento de religiosos em meio à crise da pandemia provocada pelo novo coronavírus. Leia a seguir:
Na semana passada, vimos uma nova crise política e um setor da direita lavajatista se descolar da base política do presidente Jair Bolsonaro, com a saída de Sérgio Moro do governo. Ainda assim, parte da base evangélica permanece fiel a Bolsonaro. Como você avalia esse apoio neste momento?
Em 2014, depois da eleição da presidente Dilma Rousseff, ela teve que fazer determinadas alianças com relação a uma agenda moral. Nessa agenda moral ficou selado que seria preservada a questão do aborto, por exemplo. E, em 2016, há um fortalecimento dessa agenda que vai, aos poucos, se fortalecendo na Câmara – ela já vinha fortalecida mas é a partir de 2016 que o voto confessional no impeachment fortalece a visibilidade da bancada evangélica, sempre com suas alianças com outros grupos conservadores dentro do Legislativo, como com a bancada da bala e do boi.
Esse agrupamento em torno de uma agenda moral, em 2018, novamente aparece. E aparece consolidada a agenda moral através dos candidatos. Observe que, em 2018, nós tivemos 91 parlamentares evangélicos [entre senadores e deputados], sendo que nos anos anteriores eles estavam entre 75 e 89. Não foi grande o salto, mas a bancada se manteve. Temos também a retórica de Jair Bolsonaro de uma identidade ambígua, católico-evangélica, católico de nascimento e praticante, mas batizado [dentro da fé evangélica] no Rio Jordão [em Israel].
Essa ambiguidade identitária permite um fluxo interno no Legislativo, de uma certa acomodação da figura do presidente em torno dos evangélicos. Há uma simpatia muito grande com a bandeira moral, e o foco da campanha de Bolsonaro foi a ideologia do gênero. Nós temos então essa articulação no Legislativo e agora, a partir de 1 de janeiro de 2019, também no Executivo, no discurso presidencial. Por todo o ano de 2019 e parte de 2020, se observa a fidelidade das promessas em manter a agenda moral em alta, como bandeira de campanha e agora, como bandeira de governabilidade.
Com esses pressupostos, quando você me pergunta por qual razão esse núcleo continua fiel, é porque há um reforço da narrativa da agenda moral que sustenta desde 1988 uma direita cristã no Brasil – com suas pautas internas em defesa da família, pró-vida, e com bandeiras antifeministas e anticomunistas. É tão evidente que, tanto no dia do Jejum Nacional como na videoconferência [feita por Bolsonaro] no dia de Páscoa, [quanto] nas manifestações antidemocráticas, essas bandeiras continuam sendo levantadas. São bandeiras de campanha e bandeiras de narrativa de governança e governabilidade.
Mas também não é uma estratégia arriscada desse núcleo se manter colado, neste momento, a uma imagem que está com a popularidade questionada?
Não podemos esquecer da metáfora de que a política é uma nuvem soprada por ventos circunstanciais. Isso é uma grande realidade. Tivemos um cenário de enfraquecimento [de Bolsonaro] na semana passada, com o Moro com uma pauta acusatória. Então na terça-feira seguinte (28), temos a nomeação de um ministro evangélico.
André Mendonça é um pastor presbiteriano, e não podemos esquecer que ele traz, com seu lastro jurídico, um posicionamento muito claro sobre a questão da legalização do aborto também. Se você procurar no Youtube, você vai encontrar uma declaração dele como advogado da União, no dia 24 de abril, diante da possibilidade de o aborto ser legalizado em casos de mulheres contaminadas pelo zika vírus por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Ele disse que era uma ilegalidade e que a associação de procuradores que tinha solicitado era simplesmente uma associação de categoria, cujo objeto era defender uma classe. Disse também que era uma questão jurídica.
Mas o importante é ver como ele vem colado às pautas morais.
Também não podemos esquecer que ele foi o cogitado a uma vaga no STF, quando no ano passado foi colocado [por Bolsonaro] que seria nomeado um ministro “terrivelmente evangélico”. Então, realmente há uma retórica muito grande de favorecer a esse núcleo com o qual há promessas de campanha. Agora temos esse “terrivelmente evangélico” como ministro da Justiça. Temos três posições: a ocupação do legislativo, a partir de uma bancada evangélica; a ocupação do Executivo, com um confessionalidade cristã dúbia enquanto sua identidade católica ou evangélica. E agora, pretende-se fechar o círculo: a ocupação do Judiciário e um aparelhamento do Estado no legislativo, executivo e no judiciário, com uma identidade cristã. Não estou aqui discutindo se as pautas são válidas nem discutindo se as pautas são implementadas. Mas certamente são validadas perante o imaginário social e político.
Por que esse âmbito da Justiça e a nomeação de André Mendonça são importantes para o setor evangélico?
É fundamental porque, de certa maneira, você vem consolidando a imagem de que o Brasil é cristão. No sentido de “somos um Estado laico, mas nós somos cristãos. É verdade que existe minorias, mas a maioria cristã é a que manda e é a que deve ser atendida”. Então, por que é importante? Porque se fecha esse circuito de uma governança a partir de um pressuposto moral de uma maioria cristã, que coloca em suas pautas nome de maioria. E isso é, de certa maneira, a proposta de uma direita cristã: o aparelhamento do Estado em que a moralidade cristã e os comportamentos e costumes sejam os inspiradores de legislações, políticas públicas que atendam a sua maioria societária.
Observe que estamos diante de uma estratégia que se associa confessionalmente ao aparelho do Estado, exerce funções partidárias e representativas em nome de uma moralidade e de uma religião e de uma maioria. E deflagra uma excessiva mobilização na sociedade civil, a partir das igrejas. Quando nós colocamos que os templos são um elemento essencial, como farmácias e supermercados, estamos colocando no imaginário social que a ofensiva cristã nos salvará do coronavírus. Isso é uma pandemia, mas politicamente, falando para um futuro, você inclusive fortalece um grupo que pode ser muito importante para retomar o centrão dentro do Congresso.
Neste momento de enfraquecimento da pessoa presidencial, nada mais importante que fortalecer o centrão para recriar a base. E os evangélicos serão fundamentais para isso. É um ganha-ganha. Se ganha na consolidação de um Brasil cristão, levado por uma direita. E se ganha na consolidação de se articular internamente para permitir a governabilidade mais ou menos tranquila dentro do Congresso. E, além disso, o atual nomeado ministro da Justiça também tem uma ligação com a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo] bastante forte, a partir da discussão da liberdade econômica.
Como entender esse jogo político a partir da crise instalada pelo coronavírus? E isso se replica em outros países com fortes lideranças evangélicas na América Latina?
Com relação ao coronavírus, observe o que aconteceu na América Central: houve um duplo alinhamento. As igrejas se alinham às políticas sanitárias em prol da sobrevivência – a maioria das megaigrejas da América Central até fecharam antes do tempo, porque promovem grandes aglomerações.
Estou pensando na do pastor Cash Luna, na Guatemala, por exemplo. A Casa de Dios é uma megaigreja centro-americana que tem seu flerte partidário. Como acontece com a maioria dos partidos no Brasil, a igreja não funda seu partido, mas dissemina seus pastores e candidatos pelos diferentes partidos. É claro que, na medida que ela vai disseminando, ela polariza determinados partidos. Então, os partidos cristãos do Brasil são um bloco, mas a gente sabe que o Republicanos, majoritariamente, é controlado pela Igreja Universal do Reino de Deus. Você vê a diferença: participar do jogo político com regras políticas em nome de Deus, mas não fundar um partido político em nome de Deus. Você controla um partido político a partir da igreja, seus representantes podem ser bispos, podem ser leigos, podem ser aquelas pessoas que participam da igreja ou mesmo os fiéis que se candidatam com o apoio da própria igreja, mas você vai criando um alinhamento interno que permite esse jogo político.
Quais são os exemplos desse alinhamento na América Latina?
Vou falar das megaigrejas, as pentecostais, principalmente. Na Guatemala, por exemplo, a Casa de Dios anunciou que ia doar produtos de limpeza a 500 famílias vulneráveis, fizeram uma declaração pública e se colocaram a serviço do governo. É muito interessante que eles colocam todo o staff deles à disposição do Ministério de Saúde para que utilize as instalações da igreja, caso viesse precisar para por exemplo hospitais de campanha. E colocaram toda a rede de voluntários à disposição do governo.
Esse mesmo padrão você vai encontrar em quase toda a América Central porque existem muitas alianças, como Alianza Evangélica Latina, a AEL. Em El Salvador, no dia 14 de abril, uma mega-igreja colocou suas instalações a serviço de um hospital de campanha, onde o próprio governo está se responsabilizando em pagar todas as despesas. A igreja se chama Alianza Evangélica de El Salvador. E também ela tem colocado online todos os serviços espirituais de culto etc.
A Alianza Evangélica de Honduras, que trabalha articulada com a Alianza Evangélica de El Salvador, a mesma coisa. Você encontra um alinhamento na linha espiritual, com todo o trabalho online; na linha econômica, mesmo que se fechem os templos, temos boletos bancários e temos crédito; e na linha de trabalho de articulação sanitária, se dá um apoio sócio-qualitativo.
Na linha teológica, eles estão trabalhando em um duplo registro: isso é uma peste, isso traz um grave problema; mas isso é uma grande provação de onde sairemos confortados e renovados e vamos passar todos juntos.
Na Costa Rica, eles tiveram um problema no Congresso Nacional, porque foram fechar uma igreja à força, a Federação Evangélica Costarriquense, mas depois tudo se tranquilizou e tiveram vários pronunciamentos em que os evangélicos declararam que estão alinhados, que estão trabalhando com o governo, à disposição, que eles precisavam de tempo para se organizar, mas que reiteram sua gratidão ao presidente. Essas linhas se repetem até o Panamá e a Nicarágua, onde tem as Assembleias de Deus organizadas, em torno de 2 mil igrejas, que vão colocar seus médicos e suas instalações ao serviço do Ministério de Saúde Pública e de organizações internacionais para se protegerem do mal. Quando a gente chega no Panamá, a gente vai ter esse mesmo alinhamento.
O que o coronavírus no Brasil tem demonstrado é a ascensão de uma direta cristã. Essa ascensão da direita cristã, se você associa com a visita dos pastores de Trump no ano passado ao Planalto, eles vêm definitivamente com uma agenda. E a crise da Covid-19 revela como se fortalecem esses laços internos.
O quanto esse processo brasileiro de consolidação e aparelhamento do Estado e da política por um setor evangélico está espelhando processos dos EUA?
Há ligação internacional com o governo norte-americano. Quando, em 2017, nos EUA se fala que há uma “cruzada cristã” com Trump para seu público eleitoral evangélico, ele se elegeu nesta cruzada. E consolida essa cruzada. Quando Trump indica um ministro que também é “terrivelmente evangélico”, conservador, ainda que ele tenha tido sérios problemas de contestação para o cargo por questões de abusos sexuais e outros que atingem diretamente a pauta de gênero, mesmo assim foi confirmado.
É importante observar que esse aparelhamento do judiciário também é uma pauta do governo Trump. O modelo que está sendo replicado no Brasil é um modelo de direita cristã. É uma direita cristã alinhada, nos EUA, com o partido Republicano, altamente conservador, em que direitos das minorias e bandeiras antifeministas, anticomunistas, antipluralistas são colocadas como bandeiras fundamentais de governança.
No Brasil, tivemos um dia de Oração e Jejum, que o presidente Bolsonaro inclusive encampou. Esse discurso estava se repetindo na América Latina? Outros países tiveram esse movimento?
Por enquanto, eu não tenho visto nenhuma celebração junto com o governo, como no Brasil. Houve o evento do jejum, mas pela linha teológica. A leitura pentecostal da Covid-19 é uma leitura do mal, que está embutida em uma demonologia, de um mal que vem como uma peste, um castigo, ao qual, diante da tribulação, temos que fazer jejum, abstinência. E temos que fazer obra de caridade para que nosso Deus se abrande e nós passemos por isso de uma melhor maneira. Estou fazendo uma caricatura, mas é uma teologia apocalíptica de final de tempos que diz que a tribulação passará na medida em que os fiéis sejam fiéis àquilo que se pede nesse momento, que é o sacrifício. Então, é uma teologia sacrificial.
Quais são os países em que esse movimento pela abertura das igrejas esteve mais parecido com o Brasil?
Olha, a única notícia que eu monitorei, mas que não é representativa, foi no Chile, em Valparaíso, quando morreram dois pastores que se negaram a fechar a igreja. Mas eles negaram fechar a igreja no início de março e morreram no dia 23 de março.
Então, o Brasil seria um “ponto fora da curva” na região?
O Brasil está constituindo um modelo. E um modelo político onde o peso religioso é muito forte. Eu prefiro pensar em modelos políticos hegemônicos. E que podem se tornar modelos para a América Latina. A América Latina pode replicar esse modelo, segundo as idiossincrasias de cada país.
E em qual país existe um caldo político mais parecido com o nosso, o que pode fazer com que esse modelo brasileiro avance com mais facilidade?
Eu acho que um desses países pode ser a Guatemala. A Guatemala, já há 30 anos, teve dois presidentes da República, representantes do Exército, que também são muito ligados a igrejas evangélicas. Um é Ríos Montt, militar, que fundou a Iglesia Verbo; e outro, Jorge Serrano Elías, da igreja El Shaddai… Mesmo assim, não deu para fazer um partido político evangélico porque era muito mais interessante se pulverizar nos diferentes partidos, nas Câmaras Municipais, Estaduais e da União. Então, eles vão trabalhar mais como facções – isso significa que são grupos que manipulam partidos políticos, se confessam como religiosos, mas na hora de participar do jogo político, eles são civis. Eles não vão por ser pastores, mas como o deputado, o político.
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