segunda-feira, 1 de junho de 2020

Chico Buarque & Bolsonaro: duelo entre dois Brasis

https://domtotal.com/

O embate aconteceu na legendária Lapa do Rio de Janeiro, reduto da malandragem brasileira



Bolsonaro sobre o encontro com Chico: 'Isso é coisa da Folha ou da Globo, fake news'
Bolsonaro sobre o encontro com Chico: 'Isso é coisa da Folha ou da Globo, fake news'
Alexis Parrot*
Aconteceu na Lapa lendária do Rio de Janeiro, lar da malandragem heroica e de gente espetacular como Noel, Mario Lago, Madame Satã e Geraldo Pereira. Era noite sem lua e, no fundo de um de seus bares (teria sido o Capela?), um malandro elegante, daqueles clássicos, matava o tempo em uma mesa de snooker.
Era Chico Buarque, vestido impecavelmente de branco, o chapéu panamá tombado de lado na cabeça baixa e o cigarro longo pendurado no canto dos lábios grossos. Concentrado na movimentação das bolas sobre o feltro verde da mesa, só erguia a vista para passar o giz na ponta do taco de quando em quando. Pensava em uma futura canção ou em um amor do passado, quem sabe?
A tranquilidade do estabelecimento foi interrompida por um grupo espalhafatoso de malandros que acabara de entrar pela porta da direita. Falavam grosso e riam alto, com ares típicos de quem tem o rei na barriga. Olhavam a todos com ar de superioridade, derramando vulgaridades e palavrões pelas bocas repletas de dentes de ouro.
Fecharam negócio com um contato nos States e estavam comemorando. Após americanizar a contravenção, rebatizaram-se com apelidos de fita de cowboy, passaram a chamar o chefe de boss e todo inimigo se transformou em motherfucker.
O mauricinho empertigado de óculos e cara dissimulada era Rick Salles, estrategista de esquemas infralegais e especialista em eufemismos. Supersticioso, nunca se vestia de verde; tinha horror à cor e a tudo que ela pudesse representar.
Envergando um pesado sobretudo herdado do pai, Marcelo Álvaro Anthony era o apontador de bicho da gangue, sempre distribuindo fichas de poker a título de gorjeta. Rei das roletas e do vinte e um, seu negócio era o jogo e, por isso, não se metia com outros vícios. Para beber, apenas laranjada.
Havia ainda Paul Gaydes, negociante que se dizia capaz de vender qualquer coisa (principalmente o que não era dele), além de outros três ou quatro brutamontes no papel de guarda-costas, estranhamente trajados de pijamas com estrelas nos ombros.
No centro de tudo, lá estava Bolsonaro, o capo em pessoa, vestindo um terno preto de corte militar, botas de montaria e um fez turco equilibrado no alto do cocoruto, bem ao gosto dos camisas negras de outrora. Foi até o balcão, encostou-se e ordenou uma dose de cloroquina on the rocks. Não havia terminado o primeiro gole quando avistou o jogador solitário e o reconheceu. Malicioso, levantou a voz e ordenou ao barman:
- Serve uma tubaína aí pro Chico Buarque. Por minha conta, tá ok?     
Ignorando a provocação, Chico esboçou um meio sorriso, balançou a cabeça e retomou a atenção no jogo. Imediatamente, Bolsonaro se plantou em sua frente e o desafiou para uma partida de sinuca. Acertaram o valor, casaram as notas na mão do barman e iniciaram um duelo que acabou entrando para a história.
Assim que correram as primeiras bolas sobre a mesa, os presentes aglomerados ao redor dos dois jogadores entenderam que a disputa real seria outra. Bolsonaro disparou o primeiro lance:    
Bolsonaro - Meu time está ganhando de goleada... Então, se o time está ganhando, vamos fazer justiça, vamos elogiar seu técnico - e o seu técnico chama-se Jair Bolsonaro.
Chico - Você tá fazendo piada, ou vai querer que eu chore? A sua estampa eu já conheço do museu do império; ou mausoléu de cemitério, ou feira de folclore...
Bolsonaro - O povo está conosco, as Forças Armadas também estão ao nosso lado. Vamos tocar o barco!
Chico - Pode ser que noutro porto você seja cortejado, mas aqui no meu reinado você é um peixe morto. Vai arrebanhar seu gado; se organize, meu garoto.
Bolsonaro - Por isso que eu quero que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta pra aparecer e impor uma ditadura aqui! É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado!
Chico - Cale-se! Afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue.
Bolsonaro - Eu sou a Constituição e ponto final!
Chico - Você vai se amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença.
Bolsonaro - Quem manda aqui sou eu, oras bolas!
Chico - O que não tem vergonha, nem nunca terá; o que não tem governo, nem nunca terá; o que não tem juízo.
Nessa altura, a notícia já havia se espalhado por toda a Lapa e o bar agora lotado se dividia entre duas torcidas acaloradas. O líder dos malfeitores seguia firme com sua tática agressiva. Incapaz de rebater à altura as réplicas do poeta, mudava de assunto sempre que se sentia em desvantagem.
Bolsonaro - Essa questão de fique em casa, não saia, não tá funcionando. Tá servindo apenas pra matar o comércio. Fechar casa lotérica, meu Deus? O cara que trabalha na lotérica tem um vidro blindado. Não vai passar o vírus ali.
Chico - Vai passar.
Bolsonaro - Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada: tem que parar a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa.
Chico - Nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drinque no dancing, nunca mais cheese... nunca uma espelunca, uma rosa nunca, nunca mais feliz...
Bolsonaro - Tá com medinho de pegar o vírus?
Chico - Não livra ninguém. Todo mundo tem remela quando acorda às seis da matina, teve escarlatina ou tem febre amarela. Só a bailarina que não tem.
Bolsonaro - Eu estou bem, fiz dois testes, talvez faça mais um até. Eu talvez já tenha pegado esse vírus no passado. E nem senti.
Chico - Me diz quem tapava esse sol com a peneira e quem foi que a peneira esfuracou.
Bolsonaro - Eu não. Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho.
Chico - Vai morrer na contramão atrapalhando o trânsito.
De um lado, Chico Buarque, o malandro elegante, vestido impecavelmente de brancoDe um lado, Chico Buarque, o malandro elegante, vestido impecavelmente de branco
Bolsonaro - O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.

Chico - Sol, a culpa deve ser do sol que bate na moleira, o sol que estoura as veias, o suor que embaça os olhos e a razão.
Bolsonaro - Se mudar o presidente, resolve?
Chico - Olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais.
Bolsonaro - Depois que eu sair, eu tenho certeza que vão me condenar por homofobia, oito anos por homofobia.
Chico - Se pensas que burlas as normas penais, insuflas, agitas e gritas demais, a lei logo vai te abraçar, infrator, com seus braços de estivador. A lei te vigia, bandido infeliz, com seus olhos de raio-x.
Bolsonaro - Eu não tenho pecado. Se morrer, vou para o céu.
Ao ouvir a tirada, os apoiadores do capo foram ao desvario e a plateia se dividiu com ferocidade. Enquanto um lado o chamava de "mito", a maioria o acusava aos gritos de "genocida" e "miliciano". Chico pediu a palavra novamente.
Chico - Minha cabeça de noite batendo panelas provavelmente não deixa a cidade dormir.
Bolsonaro - Eu não estou preocupado com o panelaço. Eu estou preocupado com o vírus, com a saúde, com o emprego do povo.
Chico - É o milagre brasileiro. Quanto mais trabalho, menos vejo dinheiro...
Bolsonaro - Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não.
Chico - São faxineiros, balançam nas construções; são bilheteiras, baleiros e garçons. Já nem se lembram que eram crianças e que comiam luz.
Bolsonaro - Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo. É um país em que a gente não sabe porque uma pequena parte passa fome e outros passam mal ainda. Eu não estou vendo nenhum magro aqui.
Chico - E vamos botar água no feijão!
Bolsonaro - Não estou bem visto no exterior porque a mídia internacional é de esquerda...
Chico - Mas consta no Google, no Twitter, no Face, no Tinder, no Whatsapp, no Instagram, no e-mail, no Snapchat, no Skype, no Orkut, no Telegram...
Bolsonaro - Vocês da esquerda não merecem ser tratados como pessoas normais. Vou fuzilar a petralhada!
Chico - Não tem carranca, nem trator, nem alavanca. Quero ver quem é que arranca nós aqui desse lugar.
Bolsonaro - Pô, rapaz, pergunta pra sua mãe do comprovante que ela deu pro seu pai, tá certo?
Chico - Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio... mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio, dou pernada a três por quatro e nem me despenteio - que eu já tô de saco cheio!
Bolsonaro - Você está falando da tua mãe?
Nessa hora, Chico se segurou e respirou fundo para não partir com taco e tudo para cima do oponente; exatamente o que ele queria, com sua desfaçatez. Mudou o tom da discussão e seguiu na batalha, sem perder a razão.
Chico - Quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar, tô me guardando pra quando o carnaval chegar.
Bolsonaro - Não me sinto confortável em mostrar, mas... é isso que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. O que é golden shower?
Chico - Arrasta a saia pela areia e sobe um redemoinho... é um chuá!
Bolsonaro - Igual à fábrica israelense que tira água do ar que eu quero trazer pra cá!
Chico - Só mesmo embriagado ou muito louco pra contestar e pra botar defeito.
Bolsonaro - Igual aquela vez que eu queria trazer a Tesla pro Brasil, mas o dono nem me recebeu nos States.
Chico - Já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor.
Bolsonaro - "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" - João, 8:32.
Chico - Todo dia ele faz tudo sempre igual...
Bolsonaro - E daí? Eu sou Messias mas não faço milagre!
Chico - E a gente vai ficando pra trás, esperando, esperando, esperando o sol, esperando o trem, esperando o aumento desde o ano passado para o mês que vem.
Bolsonaro - Eu não vou esperar foder a minha família toda, ou amigos meus, porque não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar!
Chico - Aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer.
Bolsonaro - Qualquer dos poderes pode pedir às Forças Armadas que intervenham pra restabelecer a ordem.
Chico - Faça não, pode ser a gota d'água.
Coincidência ou não, assim que colocou o ponto final no verso, com sonora e derradeira tacada o compositor encaçapou a bola oito e venceu o jogo. Em meio à comemoração da plateia, Bolsonaro quase pensou em contestar a derrota, mas percebeu que não teria como mentir, cercado de tanta gente.
Do outro lado, Bolsonaro depois de sorver uma dose de cloroquina on the rocksDo outro lado, Bolsonaro depois de sorver uma dose de cloroquina on the rocks
Espumando de ódio, mandou que entregassem o dinheiro devido ao desafeto. Depois, estalou os dedos para reunir seu pessoal e, já virando em direção à saída, deixou escapar entredentes um último desabafo, como que pensando em voz alta:

-   O que esses caras querem é a nossa hemorroida!
Ao ouvir tal declaração, o bar veio abaixo com uma gargalhada em uníssono, deixando o capitão mais enfezado ainda. O vencedor chamou sua atenção com um assobio, o silêncio se fez e os dois se encararam. Chico, com os olhos verdes reluzindo mais que fio de navalha, desferiu o golpe definitivo para delírio dos espectadores:
- Não é por estar na sua presença, meu prezado rapaz, mas você vai mal, mas vai mal demais.
No dia seguinte, o duelo ganhou manchete na primeira página de todos os jornais. Por conta do feito, ouvi dizer até que estão pensando em fazer uma estátua em homenagem ao Chico na Lapa, um testemunho de resistência às futuras gerações.
De volta ao seu covil em Brasília, quando alguém perguntava sobre a disputa, Bolsonaro fechava a cara, ajeitava a caneta Bic no bolso do paletó e disparava: - Isso é coisa da Globo ou da Folha, puro fake news, puro fake news...
Mas, como um castigo, sempre que contava essa mentira, imediatamente lhe vinha à cabeça a melodia de Bye Bye Brasil.
(O texto é uma obra de ficção, porém, as falas reproduzidas são reais: as de Chico Buarque foram extraídas de suas canções e as de Bolsonaro, de pronunciamentos e do noticiário.)
*Alexis Parrot é diretor de TV, roteirista e jornalista. É colaborador de várias publicações brasileiras e crítico-comentarista de televisão no Dom Total, onde escreve às terças-feiras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário