segunda-feira, 22 de junho de 2020

Eucaristia: encontrar Jesus para além do 'ver'

É preciso não esvaziar a dimensão simbólica do pão e do vinho, em prol de uma apropriação apenas visual
É urgente superar o imperativo do 'ver', no que diz respeito à Eucaristia, para a justa valorização dos sentidos aos quais ela de fato remente
É urgente superar o imperativo do 'ver', no que diz respeito à Eucaristia, para a justa valorização dos sentidos aos quais ela de fato remente (Erica Viana / Unsplash)
Felipe Magalhães Francisco*

Uma catequese que, verdadeiramente, esteja engajada com uma educação mais profunda a respeito do Mistério Eucarístico, para nossos tempos atuais, deve cuidar da questão imagética. É preciso não esvaziar a dimensão simbólica do pão e do vinho eucaristizados, em prol de uma apropriação apenas visual, que atinja apenas o psiquismo do sujeito religioso. A dimensão estética é deveras importante, mas ela precisa estar imbuída do espírito litúrgico, caso contrário, ela é vazia. Urge que, voltando às narrativas do Novo Testamento a respeito da instituição da Eucaristia, redescubramos os sentidos que são valorizados nessa relação com a comunhão eucarística, que são o tato e o paladar: tomai e comei, tomai e bebei. Os dois estão intrinsecamente associados: toca-se para comer e para beber.

Reze conosco Meu dia com Deus
Sabemos que o sentido da visão é hipervalorizado em nossa cultura ocidental, que compreende a apreensão da realidade por meio dos olhos. Além de esta ser uma compreensão que restrinja nossa ampla dimensão sensorial como experiência real do mundo, no que diz respeito à vivência litúrgica, colocar a visão como elemento mais fundamental na relação com a Eucaristia é destituí-la do lugar em que o próprio Jesus quis que ela ocupasse em nossa existência cristã. 

O evangelista Lucas foi bastante sensível e perspicaz quando, ao narrar o encontro de Jesus Ressuscitado com os discípulos a caminho de Emaús, ajuda-nos a compreender que a ceia eucarística é um dos modos de descobrirmos a ressurreição do Senhor e que, quando os olhos se abrem ao partir do pão para que se possa ver, já não é mais possível que se veja: “Abriram-se os olhos deles e o reconheceram. Mas ele desapareceu de sua vista” (Lc 24,31).

Num dos artigos anteriores, quando explicávamos a respeito dos processos histórico-teológicos nos quais surgiu a adoração eucarística como piedade no catolicismo, levantávamos o argumento de que, para a valorização e reconhecimento da presença real de Cristo nas espécies consagradas, os objetos sacros que as conteriam, passaram a ser ornadas com ouro e até mesmo com outras pedras preciosas. 

Houve uma metaforização do sagrado eucarístico, a partir de elementos tão próprios dos ambientes régios, afinal não seria o Cristo o verdadeiro rei do universo, segundo a concepção cristã? Não espanta, pois, que nos círculos carismáticos do catolicismo, a adoração eucarística seja um elemento fundamental e, não à toa, a ideia de que todo joelho deva se dobrar (cf. Fl 2,10) diante de Jesus (compreendido apenas como presente na eucaristia), o Rei dos reis, seja um imperativo religioso.

A questão estética, na adoração ao Santíssimo Sacramento, é bastante forte. Ao ponto de, se a hóstia consagrada não estiver exposta num ostensório, o efeito psíquico-religioso não ser o mesmo. A situação fica ainda mais grave quando se promove procissões, fora daquelas previstas pelo calendário e rubricas litúrgicos, e o ardor dos fiéis se coloca na dimensão do tocar o ostensório, o que acaba evocando efeitos psicossomáticos, com fins em si mesmos. É nessa perspectiva a crítica que fazíamos, em artigos anteriores, do processo de fetichização da Eucaristia.

É urgente superar o imperativo do “ver”, no que diz respeito à Eucaristia, para a justa valorização dos sentidos aos quais ela de fato remente. Nesse sentido, a catequese precisa investir em uma nova estética. Se, pois, já não há mais dúvidas a respeito do valor da Eucaristia para a vida dos cristãos católicos, por que insistir em buscar valorizar o símbolo das espécies eucarísticas com elementos que remetem a outras linguagens, que já não mais comportam valor catequético efetivo para as pessoas de nosso tempo? 

Oxalá alcancemos uma prática de veneração e adoração eucarísticas que abra mão de alfaias de ouro e ostensórios, que reduzem a experiência ao campo visual, cristalizando o mistério que se revela e se esconde por trás do pão e do vinho eucaristizados. 

Que a criatividade inspire artistas a criarem paramentos litúrgicos que valorizem nossa cultura, e que favoreçam o jogo de revelação/escondimento por detrás da eucaristia, tão fundamental para uma verdadeira espiritualidade eucarística. 

É preciso não esquecer o Jesus dos evangelhos: o rei-servo, cujo trono é a cruz; e a coroa, de espinhos. Que uma catequese eucarística propícia para nossos tempos tenha sempre viva a compreensão de que “levamos este tesouro em vasos de barro, para que se manifeste que sua força superior vem de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com

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