quinta-feira, 4 de junho de 2020

Evolução da doutrina

Um caminho de diálogo entre a Igreja e os LGBT
Fixismo doutrinário é a base do fundamentalismo religioso. Na imagem, trecho de tapeçaria inspirado em 'O jardim das delícias terrenas', Bosch
Fixismo doutrinário é a base do fundamentalismo religioso. Na imagem, trecho de tapeçaria inspirado em 'O jardim das delícias terrenas', Bosch (Maeyaert / AIC / Leemage/ AFP)

Luís Corrêa Lima*


Há quem busque na Sagrada Escritura, ou mesmo na doutrina das igrejas, algo como um manual de instrução de um eletrodoméstico. Neste, tudo está definido: que botão apertar, que produto colocar e como regular o seletor. Assim, busca-se na doutrina respostas definitivas para todas as questões práticas do cotidiano, todos os problemas morais e todos os dilemas existenciais. Um elenco de supostas verdades divinas e imutáveis dispensaria o fiel de refletir e de pensar criticamente. Este uso mecânico de preceitos e fórmulas, na incapacidade de se servir do próprio entendimento sem depender de outrem, é o que o filósofo Kant chamou de minoridade culpada. Tal fixismo doutrinário é a base do fundamentalismo religioso.

Reze conosco em Meu dia com Deus
No caminho trilhado pela Igreja Católica, com o Concílio Vaticano II (1962-1965), rejeita-se esta minoridade atrelada ao fixismo doutrinário. O evangelho é relido à luz da cultura contemporânea. A liberdade e a autonomia da consciência, bem como o seu uso responsável, têm um valor fundamental. A consciência é o sacrário em que Deus se manifesta. Ninguém deve agir contra a própria consciência, nem deve ser impedido de agir de acordo com ela. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos outros seres humanos no dever de buscar a verdade, e de nela resolver os problemas individuais e coletivos. E as ciências profanas, especialmente a psicologia e a sociologia, contribuem para uma fé mais pura e adulta.

Há também uma percepção clara de que a Palavra de Deus, transmitida pelos apóstolos, cresce em entendimento ao longo do tempo, com a assistência do Espírito Santo. É a evolução da doutrina. Isto realiza a promessa de Jesus, de que o Espírito enviado pelo Pai “vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito” (Jo 14, 26). Ao apresentar o Catecismo da Igreja Católica, o papa João Paulo II afirmou que este deve ajudar a iluminar, com a luz da fé, as novas situações e os problemas que no passado não existiam. E reitera a tradição catequética da Igreja de que a finalidade da doutrina e do ensino deve se fixar toda no amor, que não acaba. O papa Francisco, em pronunciamento sobre os 25 anos do Catecismo, ponderou que a Palavra de Deus não pode ser conservada em naftalina, como se se tratasse de uma velha coberta a ser protegida da traça. E adverte: “não se pode conservar a doutrina sem fazê-la progredir, nem se pode prendê-la a uma leitura rígida e imutável sem humilhar a ação do Espírito Santo”.

Neste processo de evolução da doutrina da Igreja, delineia-se uma nova compreensão a respeito das uniões entre pessoas do mesmo sexo, mesmo não havendo exemplo do seu reconhecimento legal na tradição bíblica. Um documento da Pontifícia Comissão Bíblica, publicado no ano passado, afirma:

“Há algum tempo, em particular na cultura ocidental, manifestaram-se vozes dissidentes em relação à abordagem antropológica da Escritura, do modo como é compreendida e transmitida pela Igreja nos seus aspectos normativos. Tudo isso é julgado como simples reflexo de uma mentalidade arcaica e historicamente condicionada. Sabemos que diversas afirmações bíblicas, em âmbito cosmológico, biológico e sociológico, foram gradualmente consideradas ultrapassadas pela progressiva afirmação das ciências naturais e humanas; analogamente – deduzem alguns – uma compreensão nova e mais adequada da pessoa humana impõe uma radical reserva em relação à exclusiva valorização da união heterossexual, em favor de uma análoga acolhida da homossexualidade e das uniões homossexuais como expressão legítima e digna do ser humano”.

Oxalá este caminho não seja interrompido. Que não falte a coragem de conservar a doutrina fazendo-a progredir, nem a coragem de libertá-la da leitura rígida e imutável que humilha a ação do Espírito Santo.

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*Luís Corrêa Lima é sacerdote jesuíta e professor da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre gênero e diversidade sexual.

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