"O que essa crise demonstrou foi que o mercado não vai salvar a vida de ninguém", disse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em debate com o presidente argentino Alberto Fernandez
27 de junho de 2020, 07:10 h Atualizado em 27 de junho de 2020,
Lula (Foto: Ricardo Stuckert)
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Leia a íntegra do discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Universidade de Buenos Aires, no debate “Pensar a América Latina depois da pandemia do Covid-19” – “É um privilégio compartilhar este momento com pessoas que fizeram e continuam fazendo tanto para mudar o mundo especialmente a nossa América Latina. Às vezes penso que viemos ao mundo com esta missão: de transformá-lo num lugar melhor para se viver. Um lugar mais humano, mais fraterno, mais solidário, menos desigual. Para muitos de nós, que viemos das camadas populares, que conhecemos o sofrimento e a privação, mais do que uma missão, transformar o mundo é antes de tudo uma questão de necessidade.
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Eu não sei como será o mundo depois dessa pandemia, creio que ninguém sabe. Tenho apenas uma certeza: países em que o governo pensou primeiramente na população, como é o caso da Argentina, sairão desta crise em situação melhor do que os que não pensaram. Quando comparo os números da pandemia entre nossos países, penso primeiramente no sofrimento das famílias de mais de 55 mil pessoas que já morreram no Brasil. Nem as guerras em que o Brasil lutou nem qualquer outra doença causou tanta devastação num período tão curto.
Quando vejo quantas vidas foram salvas na Argentina, me dói muito ver meu próprio país desgovernado, com ministros incapazes de agir para proteger nosso povo e um presidente da República que chega a fazer piada com a tragédia. Lamento muito pelo Brasil e cumprimento o presidente Alberto Fernández pela alta responsabilidade com que vem enfrentando a pandemia, por ter mobilizado o país para este combate no momento certo, por resistir às incompreensões e pressões com a coragem que caracteriza um verdadeiro líder.
O mundo sempre precisou de líderes e de sonhos. Não faz tanto tempo assim, aqui na América Latina nós começamos resgatar o antigo sonho de Simon Bolívar, a Pátria Grande como ele dizia nos tempos heroicos da libertação e da independência dos nossos países. Bolívar já antecipava algo que se tornou muito claro ao longo do século passado. Primeiramente quando nossas riquezas naturais foram apropriadas pelo estrangeiro, que interferiam diretamente na nossa soberania, apoiando governos que serviam a seus interesses, ocupando nossos territórios com suas tropas ou apoiando golpes e ditaduras com o mesmo objetivo, sempre que as forças do povo e da soberania levantavam a cabeça.
Foi assim no Brasil, na Argentina, no Chile, na Bolívia, no Paraguai, no Peru, no Uruguai.
Foi nesse período que nós, na América Latina, começamos a conversar entre nós, olhando para nossas semelhanças, para a complementariedade de nossas economias, começamos a nos enxergar como vizinhos e parceiros. Começamos a conhecer nossa força e a sonhar o nosso próprio sonho de unidade.
Começamos pelos primeiros passos, fortalecendo o Mercosul e o comércio regional. Alguns números confirmam este movimento: em apenas dez anos, a partir de 2003, o fluxo de comércio do Brasil com o Mercosul passou de 10 bilhões de dólares para 50 bilhões. Na mesma proporção cresceu nosso comércio com os países da América do Sul, de 15 bilhões de dólares para 73 bilhões. E de 20 bilhões de dólares para 94 bilhões com o conjunto de países da América Latina e Caribe.
Estes números correspondem exatamente ao avanço das relações políticas entre nossos países.
Porque logo em seguida ao fortalecimento do Mercosul nós partimos para a criação da Unasul e, em seguida, da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe, a Celac. Pela primeira vez criamos organismos internacionais em nossa região sem pedir licença aos Estados Unidos. Porque sabíamos o que queríamos e principalmente o que não queríamos. Rejeitamos soberanamente a ideia da Alca, que manteria nossas economias e principalmente a produção industrial subordinadas aos interesses norte-americanos. E porque queríamos decidir soberanamente os meios de convivência pacífica entre nossos países, criamos o Conselho de Defesa da Unasul.
Foi o sonho de Bolívar que animou companheiros saudosos como Nestor Kirchner, Hugo Chávez, ao quais presto minha homenagem neste momento. A eles nos juntamos e também Evo Morales, Rafael Correia, Fernando Lugo, Tabaré Vasquez, Pepe Mujica, Ricardo Lagos, Michele Bachelet e tantos outros nesta construção.
Olhando para trás, para o quanto avançamos e contrariamos interesses, é impossível atribuir a mera coincidência que tantos governos progressistas e populares tenham sido alvo de revezes políticos e golpes de estado nos anos recentes em nossa região.
E foram golpes de novo tipo, que nos surpreenderam pela utilização de instituições da democracia contra a democracia, pela utilização da mídia para desinformar e mentir, com apoio escancarado do poder financeiro global e de seus representantes em nossos próprios países.
Então eu chego à conclusão de que, mesmo que tenhamos feito quase que uma revolução silenciosa no Brasil para mudar a vida do povo, não conseguimos impedir que as instituições da democracia fossem utilizadas contra a democracia e o povo, mais uma vez em nossa história.
E que isso só foi possível com a participação direta, muito forte, das famílias que dominam a mídia, de corporações econômicas, do sistema financeiro e de interesses geopolíticos contrariados pelo que vínhamos fazendo em tantos países da América Latina para transformar a vida de nossas populações.
Eu mantenho e fortaleço a esperança quando vejo, por exemplo, como o povo argentino respondeu nas urnas ao fracasso retumbante que foi a volta do neoliberalismo.
Quando vejo o povo do Chile exigindo com muita força uma profunda reforma política, social e econômica, quando vejo que apesar das mentiras e dos golpes sucessivos, os partidos dos companheiros Rafael Correia e Evo Morales despontam como favoritos na preferência popular, e por isso mesmo insistem em golpeá-los por meio de farsas judiciais e institucionais.
Todos os seres humanos estão sujeitos a contrair o vírus, mas é entre os mais pobres que ele produz sua mortal devastação.
Há uma espécie de compreensão geral de que o momento é de gastar sem limites porque a vida não tem preço e a economia existe, afinal, em função das pessoas, não apenas dos números. E é o estado, em última análise, que pode proporcionar os recursos e organizar a sociedade para atravessar este momento tão difícil na história recente da humanidade.
O dogma do estado mínimo é apenas isso, um dogma, algo que não encontra explicação nem se justifica na vida real. O mito do deus mercado é apenas um mito, pois uma vez mais ele se revela incapaz de oferecer respostas para os problemas do mundo em que vivemos.
Exatamente como ocorreu na crise do Lehman Brothers em 2008 e em todas as crises sistêmicas do capitalismo das últimas décadas, é o estado que assume a conta.
Tive o privilégio de conversar sobre esse tema com o Papa Francisco e percebi que ele se dedica com alma a mobilizar os jovens economistas para encontrar saídas humanas diante deste que é o maior problema da humanidade. Sabemos que não é tarefa apenas para os economistas e as pessoas de boa vontade. Tem de envolver a (universidade) os intelectuais, os artistas, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e igrejas.
Tive muito tempo recentemente para ler, estudar e refletir sobre essas questões. Foi a maneira que encontrei para tornar úteis os 580 dias em que estive preso, e aproveito mais uma vez para agradecer a solidariedade presidente Alberto Fernandez e do prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, e tantos outros que se levantaram contra a ilegalidade daquela prisão.
A experiência me faz lembrar do que ocorreu em 2009, no auge da crise do sistema financeiro global.
Eu me recordo das reuniões do G-20 em Londres e Pitsburgh, quando os presidentes e primeiros-ministros assinamos um compromisso formal com a geração de empregos, com o socorro aos que perderam a casa e o emprego, com investimentos para a recuperação da economia. E tudo o que vimos foi o socorro ao sistema financeiro, trilhões de dólares que poderiam alimentar gerações de seres humanos e que foram utilizados para salvar os grandes bancos de uma crise que eles mesmo haviam criado com sua ganância sem limites.
A crise atual é ainda mais profunda, sem dúvida, e queira deus que desta vez os governantes do mundo aprendam algo antes que seja tarde demais. Aprendam que o estado não pode mais ser colocado exclusivamente a serviço dos interesses do capital. Aprendam que a economia tem de estar a serviço dos seres humanos e não o contrário.
Essas transformações que esperamos, e pelas quais muitos de nós lutamos toda uma vida, só podem ser realizadas, acredito, por meio da ação política.
Esta palavra e este instrumento de mediação civilizada de interesses que tem sido sistematicamente desprezada, desqualificada e criminalizada em tantos países, mas especialmente em nossa América Latina, tem de ser recuperada em sua essência. Ou voltamos a exercer a política em seu sentido histórico mais elevado, ou regressaremos à barbárie.
E esta é, a meu ver, a terceira lição que podemos aprender com a pandemia que se abateu sobre nós. Por mais profundas que sejam as crises, por mais escuro que esteja, depende de nós acender a luz nas trevas. A política, em última análise, é o instrumento pelo qual podemos transformar os sonhos em realidade.
E creio que nunca foi tão necessário sonhar e seguir lutando para construir um mundo melhor do que este em que vivemos.
Eu acho que o que vai salvar a América Latina depois da pandemia é uma palavra chamada democracia. Uma democracia de Estado forte pra cuidar do povo. Porque o que essa crise demonstrou foi que o mercado não vai salvar a vida de ninguém.”
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