sexta-feira, 19 de junho de 2020

Tudo culpa do Sarney

Uma pequena aventura de um roteirista no Oriente Médio
Volta e meia eu sondava o horizonte, ouvidos atentos ao ruído de alguma viatura do exército ou de um Mirage sobre nossas cabeças, rumo ao combate
Volta e meia eu sondava o horizonte, ouvidos atentos ao ruído de alguma viatura do exército ou de um Mirage sobre nossas cabeças, rumo ao combate (Aram Sabah / Unsplash)
Fernando Fabbrini*

Atualizando a pilha de leituras no isolamento, terminei o excelente Os iranianos, uma análise completa de um povo que, ao final, descobrimos não saber quase nada. Assina a obra o jornalista Samy Adghirni, correspondente internacional no Irã e especialista no tema. Para mim, aprender mais sobre o Irã teve um gosto extra. Nos anos 1980, estive por aqueles lados a trabalho. Foi minha primeira e, espero, última experiência de redator e roteirista num país em guerra ?" travada entre o Irã e o Iraque de Sadam Hussein.

Além de comprar caças franceses com o dinheiro farto do petróleo, Sadam realizava obras de infraestrutura contratando empresas brasileiras. A coisa vinha bem. Porém, com a escalada do conflito, o ditador passou a gastar mais com aviões, mísseis e tanques ?" e a atrasar o pagamento das empreiteiras e fornecedores.

Para todos os efeitos, nossa temporada no deserto tinha o objetivo de mostrar ao mundo, em lindas imagens, a qualidade da engenharia nacional. Entretanto, discretamente, cabia-nos a missão real. Preocupada com a possibilidade de levar um calote de dimensões saarianas, a empresa precisava documentar o que já havia sido construído por ela. Seria uma prova robusta caso levassem a dívida aos tribunais internacionais.

Ao receber nosso pedido de visto, o Ministério dos Transportes iraquiano, formado por civis, engenheiros e burocratas, deu-nos o aval e as boas-vindas. Tudo certo? Que nada! Na chegada a Bagdá, ficamos sabendo que os militares iraquianos ?" aqueles caras que comandavam o país e disparavam mísseis ?" torceram os bigodes e criaram caso. ?Estrangeiros aqui fotografando e filmando estradas, ferrovias e obras estratégicas?? Seríamos vigiados.

E assim, meio clandestinos, entre o ?pode? e o ?não pode de jeito nenhum? foi que percorremos o Iraque de norte a sul, às vezes junto à fronteira iraniana, registrando silhuetas em concreto, faixas infinitas de asfalto, ferrovias brilhantes e tamareiras sob o sol, para despistar. Volta e meia eu sondava o horizonte, ouvidos atentos ao ruído de alguma viatura do exército ou de um Mirage sobre nossas cabeças, rumo ao combate.

Após dias e noites de sustos e alívios, o trabalho estava quase encerrado. Voltávamos de Mosul, no extremo norte, quando fomos parados numa barreira militar. Em torno, sacos de areia, arame farpado, canhões antiaéreos, tanques e um punhado de soldados nervosos, portando os inconfundíveis fuzis Kalashnikov.

?" Passaportes, passaportes! Desçam do carro! ?" berraram.

?" Não é miragem. Terminou a brincadeira? pensei. A coisa estava séria. Nosso motorista, um egípcio que falava várias línguas e resolvia todos os problemas, batia boca com o oficial do posto, suando, visivelmente preocupado. Voltou pisando duro e enxugando a careca com um lenço:

?" Estão desconfiados do fotógrafo. Pensam que é um espião iraniano...

Não era para menos. O meu parceiro fotógrafo e grande amigo Paulo Laborne, de dois metros de altura, cultivava uma barba negra ao melhor estilo xiita. O oficial comandante esbravejou seu argumento:

?" Fui da escolta do presidente brasileiro quando ele esteve aqui!

Tinha sido Sarney, numa visita de cortesia ao Iraque no ano anterior. O oficial apontava-nos o dedo ameaçador:

?" O presidente era baixinho assim! Todo brasileiro é baixinho assim! ?" simulava, com as mãos, a estatura do então presidente brasileiro.

?" Como esse aí, grandão, pode ser brasileiro também?

Escapamos depois de muita conversa, ponderações e negociações. E o episódio fica registrado no Dom Total antes que o vento do tempo o apague, soprando sobre as areias do deserto. Foi apenas uma aventura de dimensões modestas, digamos assim.

*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália

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