Reflexão em memória de Santo Inácio de Loyola, celebrado no dia 31 de julho
Bendito confinamento se nos serve para receber uma luz e um conhecimento que não teríamos e bendita prova quando ajuda a nos tornar mais humanos e compassivos! (Ava Sol / Unsplash)
Adroaldo Palaoro*
Estaremos celebrando, no próximo dia 31 de julho, a festa de Santo Inácio de Loyola. No período 31 de julho de 2020 a 31 de junho de 2021, a Companhia de Jesus nos convida a viver o "ano inaciano", ou seja, fazer memória dos quinhentos anos da conversão de Santo Inácio.
Depois de cinco séculos, Santo Inácio continua sendo uma figura única e paradigmática. O marcante nele está no fato de ter sido capaz de situar-se, de maneira original e através do ritmo de decisões pessoais aprofundadas, no contexto de mudanças de seu mundo e de seu tempo. Ele é considerado o santo dos "tempos novos" que despontavam perante seus olhos deslumbrados. Novos valores emergiam, novos modos de pensar, de sentir, de viver, novas descobertas, novas terras...
Inácio é o homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes mudanças que colocavam em questão tudo o que até então era recebido.
Depois de ter posto seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a "terra de Cristo" era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho. A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.
Mas, seu itinerário não é unicamente geográfico. A grande originalidade da história e da vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da Igreja e da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu "mundo interior" e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.
Tudo começou em 20 de março de 1521. A "bala" que feriu Inácio na batalha de Pamplona não transpassou tão somente sua perna; atravessou também, de modo igualmente profundo e traumático, todo o mundo de ambições e sonhos de glória que ele havia buscado e fantasiado até esse momento. Todo um sistema de ideais se vê deste modo derrubado.
Foi forçado a um confinamento, de uns nove meses. Nas primeiras semanas debateu-se com a dor e com a morte, mas logo começou a abrir-se, para ele, algo diferente, e desse tempo nasceu um homem novo.
Um castelo interior (um tipo ideal de homem) se desmoronou, ao mesmo tempo que começou a surgir outro edifício humano, não mais centrado na busca de poder e prestígio, mas na força dos grandes desejos e na sedução pela pessoa de Jesus Cristo, que, desde então, ocupará a tela inteira de sua vida.
A partir deste momento, toma como ponto de partida o protagonismo ativo e criativo de Deus em sua história pessoal. Inácio é movido a fazer uma leitura de sua própria história com a chave do protagonismo de Deus. A leitura de alguns livros, como Vita Christi e Legenda Áurea foi, para ele, a primeira porta de acesso ao Mistério.
Da "leitura de textos" à "leitura de si mesmo": este é o deslocamento que Inácio experimenta em seu interior. Inicia-se uma travessia do "texto escrito" ao "texto da vida". Leitura provocativa e questionadora, pois ela desmonta uma estrutura fincada em falsos fundamentos e desperta o desejo de construir a vida sobre uma nova base. Uma leitura conflituosa, marcada por resistências e medos, mas, ao mesmo tempo, uma leitura atenta e centrada, com pausas para reflexão sobre as reações que ela despertava. Leitura que o compromete com outra escrita, carregada de sentido, valor e utopia. Leitura que o ajuda a "ordenar" seu mundo interior. Descobre, então, ser possuidor de uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
"Viver em profundidade" significa entrar no âmago da própria vida, descer até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Aí se pode encontrar o sentido de tudo "aquilo que se é, daquilo que se faz, se espera, busca e deseja".
A situação pandêmica, na qual estamos vivendo, pode nos oferecer uma outra perspectiva, se cairmos na conta que talvez estejamos vivendo, de um modo coletivo, o que aconteceu com Inácio de Loyola: não é um tiro de canhão que está detendo nossa correria maluca; rapidamente fomos imobilizados por um pequeno vírus, que nem sequer vemos, derrubando-nos do pedestal da autossuficiência, da soberba, do falso sentimento de que não éramos vulneráveis.
A pandemia está desvelando (tirando o véu) como são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde, muitas vezes, não há lugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para uma vida interior, não há lugar para a oração... Confusos e aturdidos, com dor e também com temor, estamos prostrados na cama, cada qual na sua (porque cada um precisa fazer seu próprio processo), mas todos no mesmo quarto, porque esta prostração nos afeta e nos diz respeito a todos.
Inácio precisou de tempo para compreender tudo o que se passava com ele. No começo, teve de lutar contra a febre e a dor de suas feridas. Quando elas começaram a diminuir, buscou primeiro entreter-se com leituras amenas e finalmente foi encontrado por Aquele que o buscava, através dessa ferida. Aquilo que no início foi vivido como uma derrota e um fracasso, foi seu segundo nascimento.
Como Inácio, talvez busquemos, num primeiro momento, nos entreter lendo "livros de cavalarias" que nos fazem fugir e esquecer a angustiante situação que estamos vivendo. Ou talvez, já tenhamos começado a ler textos verdadeiros, textos reveladores e instigantes que nos devolvem a nós mesmos para dispor-nos a uma outra escuta, agora interna.
O novo de tudo isto é que não se trata de uma situação individual, mas coletiva. É agora que nos é dada a oportunidade de nos colocar realmente a escutar e a discernir os sinais. Mas, não sozinhos, e sim, juntos. Talvez seja esta a diferença fundamental com respeito a Inácio de Loyola. Como aconteceu com ele, o desafio está em passar de um confinamento forçado a um distanciamento, livremente acolhido e carregado de presenças.
Dispomos de muitas ferramentas, entre elas, aquelas que o mesmo Inácio nos deixou, para converter este confinamento coletivo em um retiro partilhado, em Exercícios coletivos de discernimento e re-conversão. São muitos os apelos, as inspirações, os movimentos internos, as reações e os impulsos que estão em jogo. Santo Inácio, em seu leito de convalescente em Loyola, começou a dar nomes a tudo isso. Ali aprendeu a discernir e a decidir; ao sair de seu confinamento, não voltou à "normalidade" da vida, mas abriu-se ao novo, sonhando grande, ensaiando outros caminhos, indo ao encontro de um mundo em efervescência.
Também para nós, este é um tempo de kénosis, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo para despertar uma outra sensibilidade e entrar em sintonia com o Deus presente e atuante em tudo; em qualquer situação que nos encontremos, estamos envolvidos por suas mãos providentes. Aos poucos vamos descobrindo que este tempo é de uma grande intensidade espiritual.
Bendito confinamento se nos serve para receber uma luz e um conhecimento que não teríamos e bendita prova quando ajuda a nos tornar mais humanos e compassivos! Mais do que nunca, precisamos uns dos outros. A luz de um é luz para todos.
Que Santo Inácio nos inspire a viver este tempo de distanciamento social como momento privilegiado para uma intensificação nas relações, para dar passos novos, para reinventar a vida e carregá-la de sentido.
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*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais
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