sexta-feira, 24 de julho de 2020

Pedofilia: o que muda com Francisco?

Um advogado e um canonista nos ajudam a esclarecer a questão
Papa Francisco tem adotado uma política tolerância zero no tocante à pedofilia na Igreja
Papa Francisco tem adotado uma política tolerância zero no tocante à pedofilia na Igreja (Remo Casilli/Pool/AFP)
Mirticeli Medeiros*

O Vaticano tem procurado atuar com mais transparência desde o início do pontificado de Francisco. E uma das coisas que o pontífice tem priorizado em seu pontificado é o enfrentamento da pedofilia na Igreja. Uma das primeiras comissões instituídas por ele, meses depois de ter sido eleito, em 2013, foi justamente a comissão contra o abuso de menores, dirigida pelo cardeal arcebispo de Boston (EUA), Patrick O’Malley. A função da entidade, de acordo com o Vaticano, é  "melhorar as normas e os procedimentos para a proteção de todos os menores e dos adultos vulneráveis".

Tudo para tentar sanar, de alguma forma, as marcas deixadas pela prática desse crime hediondo. Apesar de que, para quem foi violado, é uma ferida que dificilmente será cicatrizada. E sabemos que num passado – em alguns casos, não tão distante –, esses abusos foram covardemente acobertados por bispos e superiores religiosos. Francisco prometeu atuar com tolerância zero em relação à pedofilia, e por isso pretende construir bases legislativas sólidas para impedir que essas situações se repitam no futuro.

Papa Bento XVI e o enrijecimento leve das normas

Bento XVI reconheceu isso na famosa Carta à Igreja da Irlanda, publicada em 2010, após ter recebido, no Vaticano, várias vítimas de religiosos pedófilos. Os encontros aconteceram ao longo dos quatro anos anteriores à publicação do texto. No documento, ele responsabiliza os bispos pela falta de transparência: "Não se pode negar que alguns de vós e dos vossos predecessores falhastes, por vezes gravemente, na aplicação das normas do direito canônico codificado há muito tempo sobre os crimes de abusos de jovens. Foram cometidos sérios erros no tratamento das acusações", disse.

Quando Bento XVI fala de "erros relativos à aplicação de normas do direito canônico", é porque, em muitos casos, o crime não chegou ao Vaticano. E, em outros casos, os padres não foram devidamente penalizados pela falta de clareza na apuração das denúncias.

Em 2001, João Paulo II ordenou que o julgamento dos “delitos contra o sexto mandamento” – no caso, contra castidade – passassem à competência da Congregação para a Doutrina da Fé, e não ficasse mais a cargo dos bispos locais – que eram os responsáveis pela condução e conclusão dos processos. E é nessa fase, que os processos corriam no âmbito das dioceses, que houve uma série de negligências.

Outro trecho da carta do papa emérito, no qual ele se volta aos padres abusadores, chama a atenção: "Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus onipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos". Analisando esta frase, em particular, nota-se um incentivo discreto para que esses criminosos sejam, de alguma forma, encaminhados à justiça civil.

A partir disso, abriu-se uma nova fase de reformas canônicas capazes de gerar punições mais efetivas. É tanto que, três meses após a publicação dessa carta, Bento XVI escreveu um motu proprio – documento que expressa um desejo pessoal do pontífice – o qual estabelecia que os delitos contra o sexto mandamento se estendiam também à "aquisição, detenção ou divulgação de imagens para  fins libidinosos" e aumentava o prazo prescricional de 10 para 20 anos. Ou seja, após 20 anos, caso não houvesse a abertura do inquérito, o acusado se tornaria inimputável penalmente. Uma norma muito parecida com a estabelecida pelo código penal brasileiro, como explica o advogado João Victor Fernandes.

"O tempo, no direito, produz efeitos. Logo, a transgressão de uma norma dá ao Estado (aquele que tem a força) o direito de punir o transgressor. O instituto da prescrição, por sua vez, significa o Estado perder o direito de punir após um certo tempo", explicou.

O advogado acrescenta que, caso uma criança oculte a violação sofrida, e no período não seja instaurado um inquérito para apurar a denúncia, "o prazo prescricional só começa a contar quando ela completa 18 anos", que é o que também estabelece a lei promulgada por Bento XVI.

O que acontece após a acusação?

Após o recebimento da denúncia, a legislação católica vigente exige que seja realizada uma investigação prévia por parte da autoridade religiosa local. Durante esse processo – que ainda não se trata de uma investigação formal –, são identificados os fundamentos da denúncia, a chamada “notícia do crime”.

Se a veracidade das acusações for constatada, o caso é encaminhado para a Congregação para a Doutrina da fé. Lembrando que, para a legislação civil brasileira, somente as agressões sexuais cometidas contra menores de 14 anos configuram a prática de pedofilia, enquanto que, para a Santa Sé, abaixo dos 18 anos. A pena máxima para esses casos, no caso dos padres, é a demissão do estado clerical, quando o acusado perde o direito de exercer o sacerdócio. 

"Esse tipo de pena é aplicada, e não a excomunhão, porque a excomunhão não é uma pena perpétua. Se a pessoa se arrepende, neste caso, a situação é remediada, a pena é retirada. No caso da demissão do estado clerical, não. É perpétua, e a pessoa perde todos os direitos ligados a esse estado de vida para sempre", salientou Paulo Profilo, mestre em direito canônico pela Universidade Gregoriana de Roma.

A reviravolta canônica

Mas antes de avaliarmos se houve ou não um progresso considerável em relação a esse enfrentamento, é necessário compreender o que prevê o Código de Direito Canônico (CDC), que é o conjunto de normas jurídicas que regulam a organização eclesial. De João Paulo II a Francisco, há mudanças significativas que, todavia, estão longe de conter essa indignação coletiva por causa do silêncio que imperou em torno da questão durante décadas.

Muitos canonistas são unânimes sobre a necessidade de uma reforma completa do direito eclesial, cuja última versão foi atualizada em 1983. O Vademecum, o manual no qual a Santa Sé esclarece como os líderes religiosos devem atuar, concretamente, na execução dos processos e na punição desses acusados, publicado na semana passada, diz:

"Mesmo na ausência duma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos". Apesar de ser considerado um avanço no tocante à colaboração entre a igreja e o "braço secular", espera-se que a denúncia às autoridades se torne regra estabelecida pelo direito católico, não somente uma orientação.

A irlandesa Marie Collins, ex-vítima de abusos sexuais, que foi convidada por Francisco para integrar a comissão contra o abuso de menores do Vaticano, deixou o organismo insatisfeita.  Ela havia pedido ao papa que criasse um tribunal especial para julgar bispos, os quais, segundo ela, no passado, tiveram seus julgamentos mascarados pelos pedidos de renúncia ao cargo, que acontecem, por via de regra, aos 75 anos. Em sua defesa, Francisco disse que na falta de um tribunal especial, seus documentos recentes já preveem mais rigidez no trato de bispos culpados. E reiterou que o prelado será julgado ad hoc – analisando caso por caso –, e “sem dó”. “Eu gosto muito da Marie e pretendo explicar a ela, quando ela vier a Roma, os pormenores da minha posição”, acrescentou. 

A "bomba explode" nas mãos de Francisco e, muitos desses casos, ocorridos entre os anos 80 e 90, acabam entrando para a sua conta. A verdade é que, alguns casos que chegam hoje, ao Vaticano, entram naquela regra da prescrição, explicada anteriormente. Por falta de apresentação da denúncia, 20 anos depois da maioridade da vítima, o réu não pode mais ser penalizado e, em alguns lugares, nem mesmo pelas autoridades civis, dependendo do que é previsto pelo código penal de cada país.

Mesmo assim, a aplicação de sua política de tolerância zero tem acontecido. O caso do ex-cardeal arcebispo de Washington, Theodore McCarrick, que abusou de jovens seminaristas, foi um exemplo. Foi a primeira vez, na era contemporânea, que um clérigo de alto escalão da Igreja Católica, detentor de uma longa carreira eclesial, perdeu todos seus privilégios clericais, e em tempo recorde.

Outro caso, de repercussão internacional, foi o do ex-padre chileno Fernando Karadima, expulso do sacerdócio por vias "excepcionais". O pontífice, amparado pelo canôn 331 do CDC, usou a prerrogativa de "sua potestade ordinária, que é suprema, plena, imediata e universal na Igreja", ou seja, agiu diretamente, sem cumprir as etapas previstas pelo processo canônico.

Além disso, em 17 de dezembro de 2019, papa Francisco aboliu o segredo pontifício dos inquéritos ligados à pedofilia. Isso significa que o Vaticano poderá e deverá conceder às autoridades civis todas as informações referentes aos processos que envolvam religiosos católicos.

"O líder da Igreja Católica luta contra uma tendência que imperava nos anos 70, 80 e 90: diante dos abusos, proteger e tutelar Instituição, não a vítima. Essa era a mentalidade dos bispos e superiores religiosos. Para o pontífice, é preciso tutelar e proteger a vítima, não Instituição", frisou o canonista. 

A lista de novidades trazidas por papa Francisco, organizada pelo canonista Paulo Profilo:

Não somente delitos cometidos por clérigos, mas também por membros de institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica são considerados;
Não só o abuso, mas também a ameaça e o abuso de autoridade na realização de atos sexuais de qualquer tipo são considerados delitos;
O conceito de vulnerável é toda pessoa que se encontra em estado de enfermidade, de deficiência física, psíquica ou de privação da liberdade pessoal. Neste último caso, algo que a limite, mesmo ocasionalmente, da capacidade de entender, de querer ou ainda de resistir à violação.
O delito contra o sexto mandamento passa a compreender a produção, exibição, detenção ou distribuição de material pedopornográfico bem como a indução de um menor ou de uma pessoa vulnerável a participar de exibições pornográficas;
A introdução de um novo caput delituoso, que é o abuso de autoridade para perpetrar o abuso sexual, independente da idade da vítima. Por exemplo: pessoas que estão sob autoridade de um clérigo ou membro de instituto de vida consagrada e sociedade de vida apostólica (seminaristas, formandos, secretárias, secretários, funcionários, dirigidos espirituais, etc.)
Outra novidade é a exigência moral de denunciar um delito sexual cometido contra um menor, uma pessoa vulnerável; além da ameaça, abuso de autoridade a utilização de material pedopornográfico. Esta obrigação se estende a todos: clérigos, membros de Instituto de Vida Consagrada e Sociedade de Vida Apostólica e qualquer pessoa que seja;
A obrigatoriedade da criação de um escritório em cada diocese que não seja ligado ao Tribunal Eclesiástico, onde as pessoas possam ter a facilidade em fazer as denúncias com segurança, discrição, reserva e integridade;
A autoridade eclesiástica deve cuidar das vítimas envolvidas e das suas famílias com acolhida, acompanhamento, assistência espiritual, médica, terapêutica, psicológica, tutelar sua imagem e preservar seus dados pessoais;
Estão sujeitos a sanções os bispos e superiores gerais e aqueles a eles equiparados que com o próprio comportamento ou decisões venham a omitir, interferir ou evitar um processo canônico ou civil contra um clérigo ou membro de um Instituto Religioso ou Sociedade de Vida Apostólica acusado de algum delito sexual;
Pedido para assinalar a denúncia também às autoridades civis
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*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.

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