sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Um homem chamado amor

Pedro Casaldáliga foi a expressão mais pura da doação ao próximo, encarnando Jesus Cristo entre os mais pobres
Um bispo sem anel, de pés descalços, uma simplicidade ao extremo e a capacidade infinita de amar
Um bispo sem anel, de pés descalços, uma simplicidade ao extremo e a capacidade infinita de amar (Wilson Dias/Agência Brasil)
Marco Piva*

Conheci dom Pedro Casaldáliga na Nicarágua. Era julho de 1985 e aquele pobre e pequeno centro-americano, recém-saído de uma guerra civil que deixara 50 mil mortos numa população de 3 milhões de habitantes, vivia o acosso da maior potência do mundo sob o comando de Ronald Reagan. Dom Pedro visitava seu irmão na fé, padre Miguel D'Escoto Brockmann (1933-2017), chanceler nicaraguense, que estava em greve de fome em protesto contra as ações terroristas financiadas pelo governo norte-americano.

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Ele já havia tomado conhecimento da minha presença em Manágua através de frei Betto, amigo comum. Ficou muito interessado em ouvir a minha opinião sobre o que acontecia e como poderia ajudar a organizar ações de solidariedade ao povo daquele país, já tão castigado ?" um terremoto matara 20 mil pessoas exatamente na noite do Natal de 1972.

Disse que apenas a sua presença iluminadora e a força de suas palavras já traduziam um gesto concreto de solidariedade por se tratar de quem era e do reconhecimento que tinha. Ele discordou. "Não, Marco, a obra que este povo está fazendo exige muito mais. Sou muito pouco diante do desafio que é enfrentar o gigante Golias". Registrei sua frase não por dever de ofício, mas porque ali se apresentava um homem que encarnava fielmente a missão de Jesus Cristo. Portanto, merecedor do meu respeito e do meu amor.

E Pedro Casaldáliga foi isso. Um bispo sem anel, de pés descalços, uma simplicidade ao extremo e a capacidade infinita de amar. Amou muito, amou a todos sem distinção, mas amou sobretudo os mais pobres, os indígenas, os sem-terra, os quilombolas, os ribeirinhos desde seu paraíso em São Félix do Araguaia, inspiração maior de sua vasta obra poética.

Pedro ficou alguns dias na capital nicaraguense e pediu para visitar onde morava. O bairro El Riguero era um dos mais pobres de Manágua, com suas casas de madeira, fragilmente amparadas em bases de cimento, uma forma de construção possível para enfrentar os frequentes terremotos. Sem tratamento de esgoto, ratos cruzavam as ruas de terra enquanto crianças brincavam embaladas pelo futuro que a Revolução Sandinista apontava.

Eu colaborava com a paróquia Santa Maria de los Angeles, cujo pároco, Uriel Molina, era uma das grandes referências da Teologia da Libertação no país e, por isso mesmo, sofria duras críticas dos setores mais conservadores da hierarquia católica. Durante uma tarde inteira, sob um sol abrasador, percorremos as ruas do bairro, conversamos com militantes cristãos que contaram suas histórias de engajamento revolucionário e terminamos nossa visita na casa paroquial com um "gallo pinto", uma tradição culinária nicaraguense preparada carinhosamente pela dona "Toñita".

Nos despedimos com um forte abraço e uma oração pela paz e a soberania daquele sofrido povo. Nunca mais o vi pessoalmente. Nem foi preciso. Seu amor aos mais pobres me fortaleceu, sua poesia me trouxe sempre mais esperança e sua figura magra, franzina, revelou a presença de Deus.

Em seu velório, sobre o caixão, lá estava a manta de retalhos coloridos que Pedro ganhou quando visitou a Nicarágua. Os pés descalços, como gostava de estar, mostravam mais do que um despojamento cristão; ali estava, deitado e sereno, um profeta que seguirá vivendo entre nós.

*Marco Piva é jornalista, diretor de redação do canal youtube 'O Planeta Azul', apresentador do programa 'Brasil Latino', na Rádio USP, e colaborador do site Dom Total.

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