O passado não volta, o futuro está aí: a Igreja frente aos novos desafios
Por Miguel dos Santos
“A Igreja é para mim aquilo que a água é para o peixe”
BLANK, Renold
Discussão de hoje gira em torno de uma parábola de Jesus que vigora até os dias atuais. Se trata do pastor e as ovelhas, texto conservado pela comunidade de João. Aqui não se deterá em comentar essa parábola, mas em questionar o porquê de Jesus usá-la. Em suma, Ele falava para um público rural, isto é, pastores, pescadores, carpinteiros, padeiros e donas de casa. A classe operária da época, pois Ele pertencia a essa classe. Nada mais justo que usar exemplos que tocassema realidade daquelas pessoas.
Dois mil anos após Jesus passar por essa terra, sua Igreja continua os seus passos. Ainda usando as mesmas parábolas que o Mestre de Nazaré usava, aqui não há problema. O problema ocorre quando já não se usa essas parábolas de forma didática adaptando-as aos novos tempos. Quais tempos? O mundo contemporâneo ou pós modernidade.
Esse novo mundo é marcado pela técnica, fazendo desenvolver a urbanização da sociedade. Cada vez menos existe uma população rural que tenha peso, como houve na Idade Média. De acordo com Renold Blank:
A sociedade urbana se tornou novo ambiente de vida para a maior parte de nosso povo. Dentro dele se movem mais de 70% da população – e vários bilhões de pessoas, quando olhamos para o mundo inteiro
O êxodo rural é gritante, causado pelo avanço tecnológico e as revoluções industriais. Não se precisa mais de muita mão de obra no campo, já que existem maquinários para isso, então muitos saem e rumam para cidade.
As cidades são ambientes enormes, as vezes consideradas verdadeiras selvas de pedra. Não há lugar para religiosidade, para Igreja e seu modelo medieval, patriarcal. Autores católicos “deploram a perda de identidade religiosa do povo, e os seus colegas do outro campo celebram a enfim secularização total da sociedade”. Até que ponto essa secularização foi boa? Tendo em vista que essa migração produziu inúmeras pessoas pobres ou abaixo da linha da pobreza, enquanto uma pequena parcela da população ficou exponencialmente rica. E continua ficando mais rica, à medida que bilhões de pessoas ficam mais pobres.
Fato é que nossa sociedade saiu do controle, quem manda é o capital. Esse transcendeu a si mesmo, isto é, pessoas matam por ele sem se importarem com o próximo. Diz Blankque “o grau de pobreza alcança patamares insuportáveis, as pessoas se brutalizam, perdem o sentido da vida, talvez estejam com medo, mas não o admitem”.
O coração de muitos se esfriou, como nos alertava Jesus.Muitos já não lembram de Deus, e a Igreja virou subcultura dentro da sociedade. O povo está disperso. Já passou do tempo de dar enfoque a um novo tipo de pastoral. Pois já não falamos mais para o povo do tempo de Jesus ou do tempo medieval. Falamos isso, pois o homem urbano atual já não aceita mais ser guiado por uma moral de rebanho, acima falamos dasparábolas e a adaptação delas aos novos tempos. Hoje em dia não é raro aparecer alguém que não sabe o que é cuidar de ovelhas, assim como não sabem o que é pescaria. Tendo em vista que as grandes metrópoles não proporcionam esses acontecimentos. Se preciso de peixe, vou à peixaria. Se preciso de carne, vou ao açougue.
O ser humano se qualificou de diversas formas. De tal modo que não se pode mais querer guiá-lo as rédeas curtas. Se o homem urbano quer uma coisa, ele compra ou faz. Se ele quiser ir a um bar, igreja, festa, ele vai, existem inúmeras por aí. Mas sem líder, pois “grande parte dos homens urbanos de hoje e do futuro não querem mais ser vigiados como um rebanho”.
E, segundo esses homens urbanos, a nossa Igreja carrega, direta ou indiretamente, o papel de vigia. De guarda da moral, mas a moral de rebanho. Como na idade média não se tinha muitos lugares para se refugiar, acabava que a Igreja, por ter o poder terreno e intelectual, era a arca de Noé onde os povos se refugiavam.
Com o decorrer da história a Igreja não foi a única a fornecer estudo, o poder foi minando, e minou muito. Hoje o povo é qualificado, instruído, e quanto mais “uma pessoa é qualificada, tanto menos ela se sente ovelha. Este é um fato psicológico”. Já se foi o tempo em que o clero portava o saber frente ao povo, hoje em dia o povo sabe mais que o clero. Este último perdeu a voz dentro da sociedade urbana. Enquanto o primeiro já não se considera leigo, não se consideram mais ovelhas. E então rejeita a mentalidade que quer mantê-los como ovelhas, sendo guiados por pastores que tem conhecimentos inferiores aos deles.
Não aceitam ser submissos a instituição religiosa, querem ser autônomos, não querem ser ovelhas, não aceitam pastores, e onde não se tem ovelhas não há razão para se ter pastores. Nas sociedades urbanas, as tecno-metrópoles, “não há mais pastor nenhum”. No entanto é um erro afirmar isso, pois é só dar uma volta pelas ruas da cidade que veremos shows, estádios, cultos neopentecostais, casas de esoterismo e bares lotados. Então “será que as ovelhas só mudaram de redil”? Cremos que sim. Quando falamos de números; nossas Igrejas estão cheias, mas se comparado ao tamanho da população estão vazias, um número absurdo de pessoas migrou para outras religiões ou religião nenhuma. Assim diz Blank:
Em época tal, as nossas Igrejas deveriam estar cheias. Mas elas não estão. Ou melhor, estão, mas, quando fazemos a comparação com o total da população, constatamos que, desse total, são apenas 7% a 10% que frequentam as nossas missas
Os outros 90% estão por aí, não à mercê dos lobos, mas em busca de novos pastores. Em busca de um lugar onde tenham voz e vez. Ipso facto que as pessoas não querem ser submissas, já o dissemos. Então o que fazer? Se o Papa João XXIII estivesse aqui diria que precisamos descobrir “os sinais do tempo”. Ou seja, precisamos entender os “mecanismos, a sua mentalidade as suas provocações e os seus desafios”. O que motiva o ser humano moderno a continuar caminhando, já que a Igreja não ocupa lugar decisivo em suas vidas? Várias coisas: a capacidade de inventar e reinventar, de descobrir um mundo novo, de se aventurar por novos caminhos, de poder escolher o que quer fazer, a sensação de liberdade, enfim, a autonomia.
E quando se fala em autonomia, a Igreja peca. No sentido que seus fiéis não podem escolher e participar dentro dela, isso fica reservado ao clero. É verdade que falamos muito em protagonismo dos leigos. Mas aqueles 7% a 10% que citamos acima, metade ainda mantém uma mentalidade de ovelha, por isso, talvez, permaneçam dentro da Igreja. E a Igreja permanece acomodada, não sai do lugar, está em sua zona de conforto. Os seminaristas (em sua maioria) não tem mentalidade libertadora, consequentemente os padres também não, até chegar ao topo da hierarquia. Pois o “leigo” já entra no seminário com essa mentalidade de rebanho.
A Igreja fala para poucos, aqueles que ainda não saíram da caverna, os que saíram não a aceitam mais. Ela se torna uma subcultura dentro da sociedade. No entanto esses que saíram não deixaram de ser religiosos, mas buscam um novo tipo de religião aos moldes do capital: o consumismo para suprimir as necessidades existenciais. O capitalismo suprimiu a Igreja, embora essa seja afetada pelo capitalismo, a nova religião é o exagero das compras no mercado: de mansões até produtos. Se as novas relações são pautadas no capital, dirão os sociólogos Marx e Engels:
Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas
Houve uma inversão na sociedade, os valores que se tinham foram perdidos com o avanço do capitalismo. O sagrado se tornou profano, a Igreja não é portadora do sacro. As pessoas largam o ópio que as guiavam, acordam para uma realidade triste que não conseguem mudar. Mas não voltam ao ópio antigo, à Igreja, preferem buscar em outro canto. Saem da caverna, de forma forçada, e não retornam mais. E nos explica Blank:
Sabemos pela psicologia da religião que toda dessacralização radical provoca como mecanismo de compensação uma re-sacralização do profano. Parece que o homem não suporta um vazio religioso. Onde o sacramental desaparece se criam ritos compensatórios que preenchem o lugar vazio: cerimonias solenes, inaugurações de jogos olímpicos ou de campeonatos de futebol, bandeiras, medalhas ou ídolos, construídos pela indústria de propaganda.
O que outrora o sociólogo chamara de “ópio do povo” não é mais exclusivo da religião, existem outros. Hoje o ópio é o futebol, as drogas, sexo, álcool e tudo aquilo que dará ao homem urbano o prazer religioso. Uma busca pelo sagrado sendo compensada em outros lugares que não é a Igreja Católica Apostólica Romana. O homem urbano continua com desejo de transcendência sem se dar conta disso. O sacro volta ao mundo de outra forma, o que outrora era o silêncio respeitoso durante a missa, hoje é silêncio durante uma partida de futebol, durante um filme ou uma novela.
Estamos em tempos de transcendência, mas o ser humano não se deu conta disso. O próprio mundo urbano coopera para isso quando produz miséria e sofrimento, quando, sobre império do capitalismo, mostra ao mundo sua verdadeira face: destruidor de lares e famílias. Aí grande parte da população se abre ao outro, em atitudes de amor cristão. Mas longe da instituição que tanto amamos e defendemos. Quando ocorre essa transcendência? Deixamos Blank responder:
- Quando o homem realiza uma tarefa que tem valor humano
- Quando ele, de alguma forma, ficar à disposição do irmão
- Quando consegue transmitir amor, alegria e felicidade.
E esses três tópicos, acreditamos, são os sinais desse nosso tempo. Sinais que mostram que a Igreja ainda pode evoluir. Mas precisa aceitar que não está mais em Trento e que o povo quer ser ouvido, não somente obedecer. Acatar essa ideia, levar esses três pontos a sério, e propor uma pastoral que não seja feita somente por bispos e padres, o clero em geral. Mas que seja feita em conjunto com o povo de Deus, que já não se entende como povo de Deus mais. Que rumam para um mundo secularizado, mas que não passa de aparência.
Aparência, pois a moral de rebanho que predominava a Idade Média ainda está aí, mas disfarçada de uma falsa sensação de escolha que o homem moderno presume ter. Ao sair da Igreja Católica seguem outros pastores, lideres ou gurus. Bares ou futebol. A mentalidade de ovelha é a mesma, mas em outro ambiente.
O ambiente que acopla tudo isso é a cidade, o mundo urbano. Um mundo que torna o ser humano um ser anônimo. Em grandes capitais já não se tem muito contato com o outro, todos são alheios uns aos outros. Não há espaço para intolerância (embora ela exista), pois grupos se formalmente os seus semelhantes. E assim se criam grupos que defendem suas pautas de forma individual sem se preocupar com a pauta do outro. A Igreja está nesse meio defendendo a sua pauta (Evangelho), mas sem voz, pois os que estão fora, em muitos casos, saíram dela, e enxergam nela uma monarquia ditatorial, uma das últimas do mundo.
Renold Blank pontua que uma das funções da pastoral urbana atual é ensinar o ser humano a escolher. Mas como a Igreja vai fazer isso se ela própria não sabe, a estrutura católica romana transcendeu de tal modo o ser humano que podemos aplicar aquela máxima do filosofo: “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”, isto é, as vezes entram nela com um ideal sublime, mas para permanecer nela é preciso se render a hierarquia e entrar no jogo monárquico-patriarcal.
O ser humano urbano não quer isso, ele se tornou rebelde, crítico, inovador e questionador. E a Igreja não quer esse tipo de pessoa. Talvez se assustem por afirmarmos isso, mas é a verdade nua e crua. É preferível uma pessoa que obedece a hierarquia, e essa continua agindo como se fosse o próprio Cristo, mesmo sem perceber que estão fazendo como os trabalhadores da vinha. “Nós somos a Igreja de Cristo, não existe salvação fora de nós”, afirmam em vão, os homens urbanos não ligam mais para isso. Talvez tenha funcionado na Idade Média, hoje não mais. Com esses bordões e chavões tentam manter o homem urbano submisso, “mas o homem urbano rejeita institivamente uma religião que o quer manter numa situação de dependência”. Principalmente os jovens, esses rejeitam a Igreja Católica, pois veem ela como uma forma de impedir que eles alcem voos altos, na mentalidade deles ela quer mantê-los sempre no chão.
Daí a razão de termos tão poucos jovens em nossa catequese, que serve para doutrinar e condicionar. E mais uma vez, não se assustem com isso. É a real. Só é preciso ir nas salas de catequese e perguntar aos jovens quem gostaria de estar ali, a grande maioria nem responderá, pois eles vão à catequese porque os pais forçam. Depois que crescem não pisam mais ali, não entram mais dentro da Igreja, tomam raiva do ambiente. Não só da Igreja Católica, mas de todo ambiente que funciona como um cortador de asas, que serve para condicionar o ser humano urbano a não ser um livre pensador e inovador. A razão? O ambiente urbano é assim.
Nas grandes capitais ou faz o que o sistema quer ou então morre. Se deixou seduzir pelo consumismo, que se afundou de tal modo nele que se tornou quase impossível deixá-lo. Precisa pagar aquilo que compra, e com tanta mão de obra, acaba se curvando ao patrão. E se não pode exercer liberdade no campo social capitalista, no “campo emocional e religioso” pode. E o homem urbano, logicamente, não vai querer um ambiente igual o dia a dia, nos diz Blank:
O que ele rejeita são as coerções de todos os sistemas, que vão além daqueles aos quais já se é obrigado a se submeter por causa das exigências estruturais de sua vida.
O que faremos? Rezar ao Espírito Santo para que venha sobre nós. Aquele mesmo Espírito que pairou sobre a água no início da criação, o mesmo Espírito que guiou os profetas. Que conduziu Jesus ao deserto, e de forma sublime deu força para a Igreja primitiva se libertar dos medos que os deixavam trancados e não os faziam sair de si mesmos e se colocar a serviço do Reino, que os libertou de uma mentalidade a muito ultrapassada, para criar uma nova.
O Espírito irrompeu naquela mentalidade, quebrando-a com força e com fogo, para que aqueles homens e mulheres saíssem de suas preocupações medrosas e começassem a ser aquilo que deveriam ser: O sal do mundo; fermento na massa; instrumentos do grande projeto de Deus, chamado Reino de Deus.
Hoje em dia ocorre o mesmo, mas Igreja não quer ver isso. A hierarquia está fechada ao novo. Ela tem medo do novo. Quer manter vinho novo em odres velhos, isto é, quer pegar o homem urbano e colocá-lo dentro da caixinha. E se ele não quiser entrar dentro da caixa, é só sair, e os seres humanos urbanizados estão saindo em massa. Nós, enquanto Igreja, não sabemos o que fazer. Temos muita teoria e pouca prática.
Para cada problema criamos uma nova teoria. Os problemas são muitos. As teorias, isto é, os documentos da Igreja, são mais ainda. E enquanto estudamos as teorias, vão surgindo novos problemas. E esses problemas são resolvidos por outras instituições que estão dentro do mundo, isto é, dentro do contexto social das pessoas que passam por eles. A Igreja, infelizmente, permanece alheia aos acontecimentos na vida dos leigos (e a partir de agora não usarei mais esse termo, sendo substituído por “católicos” ou “fiéis católicos”).
Muito se fala em protagonismo dos católicos, mas não passa de teoria, na prática não é assim, acentua Blank:
Acontece, porém, que também estes documentos correm o risco de muitos outros documentos profundos de nossa Igreja: documento bonito que não atinge a prática. Um texto não faz mudar a mentalidade de séculos.
O que ocorre, pelo que percebemos, é um esquema de pirâmide. Os católicos com mentalidade de ovelha ou mentalidade de séculos (salvo alguma minoria) entram para o seminário com um certo clericalismo indireto, isto é, pela formação que recebeu na comunidade e de seus pais, onde o poder é concentrado nas mãos da hierarquia. E assim são formados, pois os formadores também vieram dessa mentalidade e assim cria-se um looping infinito de pastor (clero voltado ao clericalismo sem perceber) e ovelha (católicos sem poder de questionamento). E aqueles que começam a questionar não ficam na Igreja, bem dissemos acima.
Mas ainda é um tanto quanto polêmico afirmar isso. Acabar com uma mentalidade que vigora a mais de dezessete séculos não é fácil. O Concilio Vaticano II começou, mas ainda não foi colocado em prática por causa de forças reacionárias que querem continuar vivendo em Trento. Causando ou continuando um medo que os fiéis católicos tem de se expressarem frente ao poder clerical, deixamos Blankcontinuar:
As dificuldades são de ordem múltipla, começando com a hesitação dos próprios leigos em assumir compromisso, e terminando com o medo de alguns irmãos ordenados de perder posições de status e de poder.
Quanto aos católicos assumirem compromisso e não o fazem, é pelo fato de terem acostumados com uma Igreja com poder centralizado na mão do clero. Perdoem nosso exemplo, mas é o que achamos no momento: é como um passarinho criado em cativeiro, quando solto na floresta, não saberá o que fazer e perecerá. E o clero funciona como o criador desse passarinho, se deixá-lo voar não escutará mais o canto dele. Em suma, se os fiéis começarem a ter autonomia o clero perderá voz, e a Igreja será forçada a mudanças substanciais dentro de si.
Muitos que estão dentro da Igreja já não concordam com o que ela ensina, mas permanecem. Se dependesse dessa maioria que soma 86% dentro da cidade de São Paulo, a Igreja teria que repensar muitas coisas de seu ensinamento. E se a Igreja se recusar a ouvir esse povo, só irá causar mais afastamentos. Não estamos mais na Idade Média, repetimos, pois muitos não entenderam. Não se pode mais vigorar a ideia de pastor e rebanho. O povo não se entende assim mais. Até em nossas pastorais é assim. O termo pastoral evoca isso, a ideia de ir ensinar a um povo que não sabe.
O povo sabe, e ao mesmo tempo que sabe, não sabe. A contradição lógica é proposital. Pois um dos obstáculos para fermentar uma mentalidade autônoma nos fiéis católicos se encontram dentro de suas próprias mentes. É bem verdade que a “estrutura eclesiástica hierarquizada produziu uma consciência de ‘ovelha passiva e obediente’”, mas também é verdade que os católicos não querem se libertar, e quando se libertam migram para outros lugares e não promovem a libertação dentro de sua Igreja.
Com razão, pois não se entendem como Igreja, essa é o papa, os bispos e padres. E são esses que decidem o que é bom para o povo. As vezes sem nem tocar a realidade dos fiéis. E essa perda de consciência, de se entender como Igreja, isto é, como povo de Deus, faz o povo perder “a sua confiança de ser agente de transformação” caindo na “passividade progressiva” de “rezar, obedecer, pagar”. E isso causou no fiel católico uma grande desvalorização, aceitem ou não. Para mudar isso, Blank enumera três exigências: 1) O fiel precisa recuperar a consciência de sua missão como agente responsável de transformação; 2) As estruturas fechadas do poder hierárquico devem ser abertas e substituídas por estruturas de comunhão e participação e 3) É preciso superar a dicotomia entre clérigos e fiéis católicos.
Quando falamos do ponto 1, existem inúmeros documentos dentro da Igreja que tratam desse protagonismo dos fiéis católicos. No entanto, como havíamos dito, não sai do papel. O motivo é de duas ordens, clero e demais fiéis. Ambos não assumem a mentalidade do Concílio Vaticano II (CVII). Além do mais, não se trata de uma sociedade homogênea, aqui não é problema, ou não deveria ser, já que São Paulo nos falou sobre isso. Sendo assim, Blank coloca cinco categorias de fiéis católicos:
1 – As ovelhas
2 – Os consumidores
3 – Os emancipados
4 – Os resignados
5 – Os revoltados
Essas cinco categorias, ou estereótipos, são definições de várias pessoas que agem dessas formas. A primeira são as ovelhas, aquelas pessoas “que não querem se emancipar”. Geralmente são tidos como “bons católicos”, não questionam a hierarquia, os ensinamentos e nada que vem de cima. E os de cima, o clero, os pastores, não fazem objeção a essa obediência, as vezes cega, por gostarem do poder, do tal múnus de ensinar. E as ovelhas recorrem a esse ensinamento, a esse poder da hierarquia. A razão? Medo de se aventurar pelo desconhecido. De acordo com Blank, elas buscam esse poder para que “lhes dê segurança num mundo que parece ter perdido o rumo”. E se perdeu o rumo, não é possível ir adiante, pois elas não sabem o que tem lá. Mas a hierarquia sabe de tudo (ou tem a pretensão de saber), a Igreja é mãe e mestra, ou é um pai. E o filho vai buscar aconchego nos braços do pai.
O pai fornece esse aconchego, então se a Igreja diz que o mundo moderno é ruim, “as ovelhas não questionam, elas obedecem”, e então se refugiam no conservadorismo, pois “ficam profundamente desconfiadas diante de qualquer transformação”. E se já encontram um clero que não quer mudar, se tornam ótimos fiéis frente a hierarquia, pois o que elas fazem de melhor é obedecer, não fornecem trabalho para manutenção da estrutura da Igreja.
Elas não são agentes transformadoras, nem do mundo e nem da Igreja. Iniciamos falando da parábola da ovelha que, segundo João, foi contada por Jesus. Mas será que o Mestre queria esse tipo de ovelha, que não transforma o mundo, que é passiva e obediente? Definitivamente, não. Jesus veio para que sejamos plenamente livres, sejam das cadeias do pecado da alma ou do social em que estamos inseridos. Para isso não podemos ficar fechados em estruturas hierárquicas, como estavam os judeus do tempo de Cristo. Como se encontrou a Igreja na Idade Média, mas já o dissemos. Vamos seguir. Para mudar, nos impele Blank:
A grande pergunta é se os pastores querem tornar-se irmão e iguais entre iguais, servidores entre servidores, ou se preferem manter estruturas de dominação. Esta pergunta fica em aberto, e, no fundo, cada um de nós deve responder diante de sua própria consciência.
Tomamos a liberdade para responder tal questionamento. A resposta segue do que Jesus diz quando se refere aos poderes dessa terra: “Entre vós não deve ser assim”.Segundo pe. José Comblin, esse texto quer “dizer que as relações entre os discípulos serão relações entre iguais e não haverá ninguém acima do outro”. Ora, os futuros padres ficamsete anos em um seminário que, segundo a hierarquia, serve para aprender e depois guiar o povo de Deus. Cursam três anos de filosofia e quatro de teologia, mas ainda não sãocapazes de romper com a mentalidade tradicional, será que existe um ensinamento libertador ou condicionador? Se a resposta for “libertador”, então os pastores não vão querer manter as estruturas, serão servidores entre servidores, irmãos entre irmãos. Caso a resposta seja “condicionador”, manterão ao máximo que puderem as estruturas antigas. E aqui existem casos e casos. Sabemos que existem ambos os lados dentro a Igreja, os conservadores e os libertadores, e esses segundos “já assumiram uma nova atitude de irmãos e irmãs ao serviço de outros irmãos e irmãs. No tecido social de nossa Igreja, tais estruturas novas já estão sendo vividas por muitos pastores e muitos leigos”.
Passemos para nosso segundo estereótipo, os consumidores. Não se diferem dos consumidores de mercadoria dentro do sistema capitalista. Estão dentro da Igreja, recebem instruções, aceitam-nas e digerem. Mas não passa disso. E buscam mais. E a Igreja sempre dá. Por isso também não buscam mudança, “em muitos lugares, são eles a grande massa daqueles que assistem às nossas missas dominicais”. Por isso manter a estrutura da Igreja, a mentalidade hierárquica, pois essa garante a eles um mundo seguro, isto é, estático.
O nosso terceiro estereótipo de católico dentro da Igreja são os emancipados. Blank os caracteriza assim:
A nova geração do homem e da mulher urbano é do tipo emancipado, acostumado a resolver ele próprio os problemas. Acostumado também a participar dos processos de decisão, seja na sua vida profissional, seja na vida social e política.
E dentro da Igreja não é assim, existem padres que trabalham com equipes, tal como conselho paroquial. Mas esse é formado por cristãos ovelhas, isto é, o padre ainda continua sendo autoridade máxima, ou como a Igreja ensina, o “primus inter pares”. Ou ainda citando Orwell, “todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros”. Sendo assim, a figura de autoridade ainda causa medo, os que estão no conselho não questionam os padres. E esses conversam com o conselho para cumprir um dever, mas não por acreditar no protagonismo dos fiéis católicos. E os cristãos emancipados não são assim, batem de frente com a autoridade eclesial. Os emancipados questionam a Igreja, “não se deixam intimidar por autoridades”.
Os cristãos emancipados trabalham em equipe, gostam desse trabalho. Mas não existe uma forma concreta de autoridade, o que há é participação mútua de todos. Como numa cooperativa. São esses os novos cristãos do nosso século: ativos, dinâmicos, questionadores e inovadores. Se não estamos prontos para trabalhar com eles, junto a eles, não à frente, mas lado a lado, eles migram silenciosamente. E a migração gera os cristãos resignados, o nosso quarto estereótipo de cristão. Segundo Blank, eles são:
Aqueles que, em certo momento, perderam a esperança de que esta Igreja possa mudar. Aqueles que foram decepcionados nas suas esperanças e nos seus anseios para uma Igreja mais fraterna e mais comunitária. Os sonhadores, cujos sonhos não se realizaram, e que por causa disso se retiraram desta Igreja. Muitas vezes eram engajados nela, mas, agora, não querem nem aproximar-se de um templo.
Poderíamos chamar de pessimismo da razão, por suas experiências negativas dentro da Igreja não conseguem ver uma solução para ela, não acreditam que ela possa mudar. Não conseguem ver formar uma comunidade de iguais entre iguais. Saíram de nós, mas não os perdemos como críticos. Os cristãos resignados são bem formados, sejam pela experiência pessoal ou então pela formação acadêmica. São ativos, já o dissemos, eram ativos dentro da Igreja, fora dela eles continuam, por isso é urgente trazê-los de volta. É um desafio, precisamos deixar o Espírito Santo agir, romper com o antigo e trazer o novo que foi/é o ideal de Jesus, isto é
Verdade entre os homens; amor em vez de egoísmo; fraternidade em vez de legalismo inumano; justiça dentro das próprias estruturas e fora delas [...]
Uma Igreja que leva a sério a evocação à conversão, formulada com insistência pelo próprio Jesus. Uma Igreja dentro da qual, num espírito de amor, se vive verdadeira participação de todos.
Quando temos essa Igreja comunhão/participação essas duas categorias (emancipados e resignados) voltam entusiasmados para servir, e encontram outras pessoas que agem da mesma forma, então começam a construção do Reino de Deus. No entanto, dentro da categoria dos emancipados ainda existe uma outra ramificação, nosso quinto estereótipo de cristão: os revoltados.
Os revoltados assim o são, igual ao estereótipo anterior, quando passam por uma experiência frustrante dentro da Igreja. Eles querem participar das decisões, não só de organizar uma festa ou uma quermesse, mas dentro do alto clero, isto é, decisões nos caminhos da Igreja. No entanto essas decisões ficam com os tubarões de Roma, com os peixes grandes da diocese que o bispo delega para tal. Cria-se o clericalismo e vai fermentando. Numa estrutura fechada o cristão se revolta, pois não aceita ser ovelha. Dissemos acima que Roma era uma das últimas monarquias absolutistas do mundo, os cristãos revoltados “rejeitam o poder e sua legitimação absolutista e se afastam, buscando outras atividades, assumindo novos compromissos em outras entidades, fora da Igreja”.
No entanto eles não se sentem afastados da Igreja, é o contrário, a Igreja que se afastou deles. E com razão pensam assim, desde tempos antigos, quando se criou a casta sacerdotal. Criticamos tanto os judeus por se fecharem que nós nos fechamos dentro do templo. Criamos um judaísmo cristãos católico, estrutura sacerdotal judaica misturado com estrutura do Império Romano e filosofia grega. Estamos presos dentro daquilo que nós criamos. Alienamos a nós próprios. E essa Igreja, segundo os revoltados, não poderá mudar.
Mas amamos essa Igreja de tal modo que damos a vida por ela, pois sabemos que quem a dirige é o Espírito Santo de Deus e Ele é “transformador, incômodo e suspeito a todos os guardiões de ordens antigas e suspeito a todos os representantes de estruturas cimentadas”. E dar a vida por ela significa buscar a mudança para que a Igreja continue na sua missão de anunciar o Reino de Deus que também é nosso. Para mudar é preciso ver os sinais do tempo que estão em nosso meio, um deles é o êxodo silencioso. O outro é o avanço do mundo, as novas descobertas da sociedade, o ser humano que quer voar rumo ao novo. E ao invés de condenar essas revoluções poderíamos aprender com elas e nos abrirmos a mudança:
Hoje não adianta querer prolongar ou salvar uma visão edificante da Igreja na sua hierarquia como se tudo fosse positivo, como se tudo fosse êxito, como se tudo fosse inspirado pelo Espírito Santo – como uma extensa literatura apologética e hagiográfica o repetiu durante séculos. Tal retrato da Igreja somente suscita rejeição porque a história a desmente com muita evidência.
Significando que podemos evoluir enquanto Corpo evangelizador de Cristo. Se não quisermos aprender e evoluir, “podemos com poder e autoridade, manter as estruturas do passado, mas, se fizermos isso, ficaremos cada vez mais solitários”, então falharemos naquilo que o Mestre de Nazaré nos pediu: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos”.
Se tornar discípulo de Jesus é agir conforme ele agiu, isto é, com amor, misericórdia, liberdade e ajudando o povo a se libertar de cadeias injustas. Se a Igreja não fizer isso vai acabar sozinha, com suas ovelhas que são minoria. Aceitem, e dói mais quando se aceita isto, a Igreja é “minoria num mundo não cristão. A sua voz é uma entre muitas outras, e as suas propostas estão sendo analisadas de maneira crítica e rejeitadas quando não convencem”. Sofismas não adiantam mais, isto é, argumentos de autoridade. Diz Blank:
Se ela se apresenta em primeiro lugar com proibições e sanções, com ameaças e mandamentos a serem obedecidos, os homens e as mulheres de hoje a identificam com a imagem de uma camisa de força e formulam a inquietante repreensão que, nos últimos 1.400 anos, diante de todos os grandes movimentos de libertação, esta Igreja estaria sempre ao lado das forças retrógradas conservadoras e opressivas, oprimindo e combatendo qualquer nova idéia e qualquer tentativa de libertação.
E as pessoas querem ser livres, Jesus foi livre, os que seguem o Mestre de Nazaré enxergam uma discrepância entre o que Ele ensinou e viveu e o que a Igreja ensina e vive. Então saem da Igreja. Aquela ideia de Jesus que os seus seguidores seriam reconhecidos pelo amor já não existe mais. A Igreja ficou conhecida pelo terror de épocas passadas e seus clérigos são os que fazem a manutenção desse poder em dias atuais. A Igreja já não é mais luzeiro para o povo, ela deve “ser um fermento novo, fermento de liberdade e de amor, embora seja tantas vezes infiel em sua vocação”. Olhemos os sinais do tempo, o povo quer mudança. Querem autonomia. Não são ovelhas, ao invés de tutela de padres e bispos, querem participar ativamente da Igreja, das tomadas de decisões, não só organizar quermesses e bazares. A razão? A quarta onda da transformação social (TS) que ajudou muito a formar essa nova mentalidade no âmbito empresarial.
Nas empresas já não se fala mais de liderança hierárquica, pois “foram substituídas por estruturas de participação”, e essas estruturas exigem cooperação ao invés de obediência, colaboração ao invés de subordinação. Nessa quarta onda da transformação social encontramos um povo que busca uma comunidade e participação democrática. E as empresas entenderam isso, e estão transformando suas estruturas. Fato é que a submissão está sendo cada vez menos procurada no âmbito profissional.
Mas a Igreja não é uma empresa, no entanto seus fiéis, aqueles que se enquadram nos estereótipos citados acima, trabalham nesses locais e estão dentro do mundo urbano. Falamos dessa onda e TS, pois o que eles vivem lá fora, no mundo, irão querer viver dentro da Igreja. Mas a Igreja está alheia a eles, não está no mundo, é igual uma cultura frente a outras tantas culturas. E assim vai intensificando o êxodo religioso, pois aqueles que aprenderam e superaram a mentalidade de ovelha, se tornando seres emancipados, isto é, que querem decidir e ajudar muito mais que numa barraquinha das festas dos padroeiros e se isso é negado, não continuam dentro dela, pontua Blank:
E quando tal participação responsável nas decisões lhes é negada, eles primeiro lutam por ela. E quando têm a impressão de que a luta não adianta, vão embora e buscam outros campos de ação. Esta é asituação, são estes os sinais dos tempos de hoje, e querer negá-los significa simplesmente fechar os olhos diante dos fatos.
Mas a Igreja não fechou os olhos diante dos fatos, postulou diversos documentos que tratam dessas temáticas, dessa nova mentalidade. Mas é o que já dissemos, muitas vezes, raras as vezes que não, isso só fica no papel. Então nos perguntamos se a Igreja pode mudar, e nossa reposta é sim, embora a estrutura da Igreja seja de uma monarquia. O povo de Deus se baseia, não numa instituição, mas no próprio Deus, Ele é nossa esperança, e n’Ele há de vir a transformação. Alguns dentro da Igreja perceberam isso, formularam documentos que incentivam a participação conjunta do povo, isto é, substituir as estruturas de poder hierárquico por estruturas de comunhão e participação”, como a LumenGentium presente no CVII. Da euforia presente após o Concílio veio a reação de imensa maioria, um neoconservadorismo que busca centralizar o poder nas mãos do clero. Mas impedindo o CVII de avançar causou um retrocesso enorme na Igreja, pois enquanto ela voltava a moral de rebanho, a sociedade se emancipava, sobre isso os bispos da América Latina, na quarta conferência Episcopal em Santo Domingo, alertou:
A persistência de certa mentalidade clerical nos numerosos agentes de pastoral, clérigos e inclusive leigos (cf. Puebla 784) ... priva-nos de dar respostas eficazes aos atuais desafios da sociedade.
Essa mentalidade clericalista precisa ser superada, não há espaço para ela dentro da Igreja de Jesus Cristo. Na Igreja de Jesus deve ter participação plena de todos os batizados, “sociedade fraterna, igualitária, sem domínio de ninguém sobre ninguém”. Não pode haver em nossa Igreja discursos de poder, Jesus enfrentou os poderosos que usavam o templo para oprimir, diante daqueles que gostam de mandar, mostrou que veio para servir e não para ser servido. Isso incomodou, mexeu com a posição de alguns privilegiados,hoje ocorre o mesmo. Mas se mexer com a posição dos privilegiados do reino, isto é, o clero, acabam sendo expulsosou simplesmente saem. Por isso urge superarmos o clericalismo e a mentalidade classista dentro da Igreja.
Pela Igreja e seus documentos essa mentalidade foi superada, e já não há espaços para encíclicas como a Vehementer nos de Pio X. O problema não está na teoria, mas na prática. A Igreja hierárquica não faz parte dos planos de Jesus, e as pessoas aprenderam isso, no entanto uma grande parcela, suficiente para encher as Igreja, dão uma falsa ilusão que está tudo bem, e o clero hierárquico aceita. Mudanças não vem. As poucas que vem são suprimidas, como os padres da Teologia da Libertação que buscaram voltar a uma Igreja como Jesus queria, uma eclesiogenesis. Voltar a ideia da Igreja de Jesus ser reconhecida pelo amor entre os seus. Não é impossível, mas é preciso conversão dos corações daqueles que mantém o poder, e também formar a base e incentivá-los mais dentro da Igreja.
Pois é na base que estão os futuros padres, nossos seminários precisam olhar para isso e mostrar aos que pretendem entrar e aos que estão que a opção de Jesus é o serviço e “quem realmente serve, nem pode recorrer à bonita regra de que só mantém o poder para servir”. Poder é poder, poder gera autoridade, para um ter autoridade precisa de submissos. Aqueles que tem poder dentro da Igreja devem entender que já não há espaço para mandar, pois eles mandam porque o povo obedece, e o povo não está obedecendo mais a Igreja e suas inúmeras leis e preceitos. É preciso novos odres, não remendar os antigos, é preciso deixar o Espírito Santo transformar a Igreja para esses novos tempos.
Esses novos tempos pedem uma Igreja aos moldes de Jesus Cristo, uma comunidade de irmãos. De participação de todos, onde os batizados são verdadeiramente inseridos na comunidade, isto é, participam da vida da paróquia e nas grandes decisões da Igreja, como a questão do celibato obrigatório ou não, ordenação feminina, casamento homoafetivo. Serão protagonistas das decisões:
Em tal protagonismo, ninguém vai reclamar direitos maiores, nenhum membro terá poderes ou prestígios maiores; cada um age conforme os seus carismas e submete estes carismas ao grande projeto da transformação deste mundo conforme os parâmetros do Reino de Deus: eis o único modelo que realmente pode corresponder aos planos de Jesus Cristo.
Uma comunidade de iguais, sem um igual está à frente do outro. Todos os batizados formam um sacerdócio santo, não pode haver privilégios de poder, aliás, essa palavra deve ser extinta do vocábulo cristão. Não é preciso de poder para servir, o que leva ao serviço é o amor, e amor não cria classes. O nosso desafio, enquanto Igreja, é aprender a lavar os pés uns dos outros. Servir e não ser servido. O clero e demais fiéis “interiorizaram de tal maneira o modelo de uma Igreja classista, que não conseguem mais imaginar algo diferente”. “Para servir é preciso manter a estrutura católica romana”, afirmam alguns, e outros de forma inconsciente. Todos precisam da conversão de Jesus, a fé de Jesus, isto é, uma fé libertadora capaz de romper com o antigo para fazer surgir a boa nova do Reino. E existem aqueles (padres e bispos) que querem romper com a mentalidade retrógrada, no entanto encontram fiéis que não cooperam para isso, diz Blank:
Entre nossos irmãos, muitos sacerdotes e bispos, com dedicação e às vezes com muitos sacrifícios, esforçam-se para realizar o ideal de comunhão. Mas eles esbarram nos chamados “leigos”, que pensam em termos muito mais hierárquicos que a própria hierarquia. Querendo superar as barreiras classistas dentro da Igreja, muitas vezes os nossos irmãos ordenados chocam-se com leigos que gritam por estas barreiras, que querem as relações de subordinação e sustentam a manutenção de estruturas do poder
Já o dissemos anteriormente, isso é consequência de séculos de submissão, que Blank pontua da seguinte forma:
Por causa de séculos de história [...] aprenderam que:
As pessoas ordenadas são automaticamente os líderes escolhidos por Deus;
Nuca se pode questionar o modo como estes líderes interpretam a fé;
Não se pode questionar as decisões destes ordenados a respeito a atividade ministerial.
Os nossos irmãos ordenados atualmente são consequência dessa mentalidade, pois adentram nas casas de formação com essa forma de pensamento e, consequentemente, se consideram a partir dos próximos três pontos colocados por Blank:
Que a ordenação lhes dá poder e sabedoria para eles serem os únicos a se pronunciarem sobre as verdades doutrinais;
Que são obedecidos e honrados pelo povo;
Que são eles os únicos responsáveis pelas paróquias e suas atividades.
É preciso mudar essas concepções, é preciso mudar a estrutura. Fala-se muito em clericalismo, mas se quer acabar com ele é preciso acabar com a estrutura que ajuda a fomentá-lo. Não há discussão. Enquanto a estrutura da Igreja for essa, o clericalismo vai reinar, de forma consciente ou inconsciente. A frase do momento é “sinais do tempo”, eles estão mais visíveis que nunca. Esses sinais precisam interpelar a Igreja à mudança, e essa consiste numa comunidade que supera toda divisão classista e hierárquica. Não há razão para termos medos disso, os que tem receios são os que querem manter o poder ou que estão com o modelo hierárquico impregnado no inconsciente.
Mas não há razão para temer. Quem guia a Igreja é o Espírito Santo, esse dá coragem aos homens e mulheres de boa vontade para fazer acontecer a transformação. E existem muitos cristãos de boa vontade que querem ver a mudança, embora não pareça, mas eles estão por aí configurados no terceiro estereótipo que mencionamos acima, eles queriam, e ainda querem pertencer a Igreja, mas essa “os excluiu dos seus grêmios deliberativos, eles, agora, estão construindo o novo mundo sem ela”. E esse mundo é mutável. Os centros das cidades, as moradias, as lojas, e a Igreja e paróquia continua estática.
Essa estaticidade vai fazendo a Igreja se perder em meio à multidão, ficando cada vez mais afastada. Daí já se pode pensar em criar centros de reunião em outros lugares, celebrações nas ruas e, aos poucos, descentralizar o poder da Igreja e da casa paroquial. Criar comunidades pelas cidades, pois a mentalidade rural da Igreja ao centro não vai estar presente por muito tempo. Precisamos nos inserir no mundo se quisermos anunciar o evangelho as pessoas, ondes as pessoas se encontram: “nas fábricas e nos centros comerciais, nos lugares de lazer, nos supermercados, nos shopping centers, nas estações de metrô, de trem e de ônibus, e por fim simplesmente em cada bairro e em cada conjunto habitacional”, numa palavra, ser Igreja com povo.
O clero não consegue realizar isso sozinho, por isso a participação do povo é fundamental. Em nossas comunidades temos pessoas capacitadas, muitas vezes mais que o clero, trazer essas pessoas para dentro da Igreja: psicólogos, advogados, teólogos, dentistas, e várias outras profissões, que ajudam o povo fisicamente para que possam rezar bem: a união do espiritual e material. Quanto aos padres, podem trabalhar com alguma coisa, como os “padres operários da França dos anos 50”. Quanto ao argumento de que os padres não teriam tempo para cuidar da paróquia ou celebrar a eucaristia, não precisamos nos preocupar, na nova Igreja – Comunidade de iguais, as mulheres e homens casados poderão fazê-lo. Pois o Espírito Santo é derramado sobre homens e mulheres, e ambos podem agir “in persona christi”.
Não existe problema aqui, a não ser as barreiras colocadas pela própria hierarquia que, centralizando o poder, não quer dividi-lo com os outros. Por isso é preciso olhar para as casas de formação, e investir numa formação libertadora para nossos futuros padres, pois assim poderemos mudar a Igreja, por ação do Espírito Santo. Não podemos esquecer d’Ele, Ele nos levará ao primeiro amor, isto é, os ideais de Jesus. A primeira preocupação de Jesus era o ser humano, morreu para nos tornar humanos, não para manter estruturas. O Espírito Santo derruba estruturas classistas, acentua Blank:
Um Espírito derramado até sobre “escravos e escravas” (Jl 3, 2) derruba todas as barreiras de classes e privilégios sociais e também todas as ideologias, sejam elas políticas, sociais ou religiosas, com as quais se tenta justificar essa estratificação.
Estruturas que insistimos em manter, mesmo os sinais do tempo gritando que não há razão para tal. Precisamos mudar, urge a mudança, ou mudamos ou iremos ruir em anos posteriores. Não a Igreja, enquanto povo de Deus, esse irá existir até os finais do tempo, mas me refiro a instituição. Quando falamos tudo isso acima, não queremos denegri-la ou atacá-la, mas trazer uma reflexão atual e urgente. Amamo-la, a Igreja é para nós o que água é para o peixe. Por isso escrevemos isso, pela nossa preocupação, ela precisa ser atualizada ou então ficará vazia num futuro não muito distante.
Paz entre os homens e mulheres, São Carlos de Foucauld, nosso irmão universal, rogai por nós para que o Espírito Santo venha sobre nós e possamos construir uma Igreja aos moldes de Jesus Cristo.
REFERÊNCIAS
BLANK, Renold. Ovelha ou protagonista: A Igreja e a nova autonomia do laicato no século 21. São Paulo: Paulus, 2006. – (Coleção Comunidade e Missão)
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