Por Alvim Aran*
Iniciaremos este texto falando do título, pois é preciso abraçar a nossa cruz, mas não para carrega-la ou acostumar com ela, porém superá-la. Uma superação que Jesus nos ensina quando abraçou a dele. Não podemos nos conformar com a cruz, ela é sinal de sofrimento. Mas também não podemos desprezá-la, pois é sinal de aprendizagem. Uma forma um tanto quanto cruel de se aprender, falando com nosso olhar de seres humanos do séc. XXI.
Aprender com a cruz ou com o sofrimento chega a ser perturbador, diz Facção Central, mas só assim aprendemos a viver com mais valor. E as vezes não carregamos nossas cruzes cotidianas. Não as aceitamos e, consequentemente, não iremos vencê-las. Jesus aceitou sua cruz, e só depois de aceita-la ele pôde vencê-la. Não podemos passar por uma barreira sem antes ver que ela existe. Jesus encontrou várias, e soube traspassa-las. Dentre alguns obstáculos se destacam, e aqui falamos com um olhar latino-americano lendo e observando as mazelas que assolam nosso continente, a sua morte sob tortura pelo poder estatal e religioso.
Como aconteceu no tempo de Jesus corremos o risco de fazer o mesmo. Sermos agentes ativos da crucificação de inúmeras pessoas. Não de forma direta, mas indireta quando nos tornamos alheios aos sofrimentos dos seres humanos, de outra forma, quando não vemos que o nosso próximo sofre e não trabalhamos para sanar o sofrimento. Sofrimento que vem de tempos longínquos. Mas não iremos aprofundar, falaremos da Ditadura Militar no Brasil que ajudou a formar a mentalidade dos Teólogos da Libertação (TL), que levou a criação da CPT e, consequentemente, o MST:
Em 1975, surge a Comissão Pastoral da Terra (CPT) vinculada à Igreja Católica. Ela se organizava a partir de diversas paróquias das periferias das cidades e também em comunidades rurais, dando assistência aos camponeses, tal como faziam as CEBs nos anos do regime militar. No início, a CPT voltou-se para luta dos posseiros do Centro-Oeste e do Norte. Posteriormente, com a eclosão da luta pela terra em todo o país, ela tornou-se uma instituição de alcance nacional. A atuação da CPT no Sul do país deu origem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Inaugura-se aí uma nova relação entre a religiosidade popular e as instâncias oficiais da Igreja. Fé e luta social se unem de outra maneira.
Agora era a ação, fé e obras juntas. Fé capaz de transformar e fazer o povo lutar pela terra. Lutaram contras os poderosos da época, os ruralistas, grandes fazendeiros, latifundiários, deputados, presidentes e militares, e às vezes, contra a própria Igreja que via na luta dos TL’s uma forma de subversão. Esses poucos proprietários de terra infligiam cruzes sobre o povo sofrido daquele tempo e dos dias atuais.
Os poderes que impõe sobre nós os pesos que não conseguimos carregar, e não estamos aqui para falar da cruz pessoal de cada um (elas existem e também devem ser superadas). Iremos falar de forma geral sobre a cruz imposta pelos poderes terrenos que acarretam outras inúmeras cruzes, mais especificamente o pecado social. O pecado da miséria que leva a subcultura e que faz o ser humano não viver dignamente a maior vocação dada por Deus: a vida.
No entanto nossa vida é marcado por sofrimentos, por dizimações de raças e povos originários para manutenção da riqueza de alguns poucos. Vida que não se desenvolve plenamente, pois não há condições para isso.
As condições necessárias para cada um se desenvolver de acordo com os talentos que possui não chega a todos, há algo de errado com a sociedade. Não surpreende, já fomos alertados (cf. Mateus 24, 12). Tal como uma semente precisa ser cuidada para que se torne árvore, o ser humano precisa de cuidados para que torne um bom adulto . Chega a ser triste ver pessoas defendendo meritocracia quando não há as mesmas oportunidades para todos. Exemplificaremos melhor: é como colocar um peixe, um macaco e uma girafa para disputar uma natação. Obviamente que o peixe ganhará, pois é dada a ele as condições suficientes para tal. No entanto se colocarmos esses três animais para uma corrida numa árvore, o peixe perderia.
Com os seres humanos ocorre o mesmo. Pegamos uma situação de pessoas que moram em áreas menos favorecidas e sem acesso à educação de qualidade, sem internet e bons livros para concorrer com outras que estudaram em escolas particulares, que não precisam estudar e trabalhar, que não passam por dificuldades em casa. Quem vence? O segundo caso, pois o primeiro para vencer deve trabalhar dobrado. Como diz Mano Brown na introdução da música “A vida é um desafio”: “Como fazer duas vezes melhor se você está pelo menos cem vezes atrasado?”.
E esse atraso também são cruzes que nos são impostas. Ninguém nasceu para miséria e para vida sofrida. Nosso Deus é o Deus da vida, de uma vida boa. Um Deus que quer o melhor para o seu povo, biblicamente falando, um Deus que mostra o povo uma terra onde corre leite e mel (cf. Ex 33, 3), isto é, uma vida sadia e sem cruzes.
Então nos soa estranho que um Deus da vida e que dá a vida, peça a morte de um animal indefeso para expiação dos pecados, e mais ainda, que peça a morte de seu próprio filho. Sabemos que a bíblia traz consigo uma linguagem mítico-poética, que foi, quando escrita, influenciada pela cultura dos povos antigos que rodeavam quem a escreveu e que os escritores eram filhos de seus tempos. E por serem filhos de seus tempos, ainda sim, bem a frente, pois a Bíblia traz consigo em várias partes ideias revolucionarias, tal qual o amor que Jesus ensinou revolucionou aquele tempo e a forma de enxergar os menos favorecidos.
Em momento algum Jesus romantizou a situação daquele povo sofrido, sabia que aquela condição não era o Reino de Deus. Ensinou-nos a chamar Deus de Pai (cf. Mt 6, 9) para mostrar que somos todos irmãos. E sendo filho de seu tempo, bateu naqueles que estavam destruindo a sociedade e mantendo aquele sistema de morte e de cruzes.
E esse filho de seu tempo diz muito, naquele tempo Jesus tinha ciência do que estava acontecendo, que os fariseus e os mestres da lei tinham perdido o real sentido evangélico, e isso precisava ser denunciado custe o que custar. E custou muito, custou a vida de um homem inocente, mas se um grão de trigo não morrer não nasce. (cf. Jo 12, 24)
O poder religioso subverteu de tal modo o povo que esses acusaram Jesus de subversivo e blasfemador (cf. Mt 27, 20). E foi o que levou Jesus a morte, mas o Mestre de Nazaré sabia que isso aconteceria. E mesmo assim, por amor a Deus, abraçou a cruz. Como ser humano, pediu a Deus nos instantes finais de sua vida para livra-lo de tal condenação. Ainda mais profundo, como ser humano consciente do amor de Deus, amando e sendo amado, pede para não ser feita a sua vontade, mas a do Pai. (cf. Mt 26, 39)
A vontade do Pai é vivamos, não morramos, mas chega determinado momento na vivência do amor cristão que precisamos escolher entre a vida e a morte. Entre as situações que cooperam para a vida e as situações que cooperam para morte. Essas situações são várias, já citamos algumas. Vejamos outras enunciadas pelo Leonardo Boff no livro de espiritualidade que utilizamos como base para escrever tal texto, diz ele:
Milhões e milhões das classes subjugadas continuam sendo crucificados com salários de fome, em condições de trabalho que lhes encurtam a vida e em situações higiênicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhões de pessoas anualmente. Outras pessoas penam sobre a cruz da descriminalização pelo de fato de serem mulheres, doentes, pobres, negras, homossexuais, portadoras de Aids e devido a outras formas de exclusão e morte social
Jesus fez a escolha pelos mais necessitados e abraçou a cruz e os problemas daqueles que não tinham como se defender. Denunciou e foi acusado de subversão (cf. Lc 23, 5). Mexeu com poder de alguns privilegiados e foi acusado de blasfêmia. Poderia ter parado e deixado para lá, mas o amor o levou ao extremo, a morte de Cruz (cf. Jo 13, 1). Não porque Deus quis, mas porque a relação de amor entre as três pessoas da Trindade Santa o levou a isso. E consequentemente, cometendo anacronismo histórico, a ignorância do Antigo Testamento levou sacerdotes a matarem animais para expiação dos pecados, a ignorância do Novo Testamento levou os poderes humanos a matar Jesus. E ele morreu como vítima inocente, mas ressurgiu como Deus dos sofredores, aquele que aceitou a cruz e venceu-a.
E nós, onde entramos? Nós ficamos com a cruz de Cristo. Significando que também devemos amar de tal forma nossos irmãos e irmãs ao ponto de sermos capazes de dar a vida por eles e agir para sanar as situações de miséria em que se encontram no mundo, privando-os de viver a maior vocação dada por Deus que é a vida. Uma preocupação que deve ser de todos os cristãos, pois Jesus, quando os discípulos falaram para dispensar aqueles que o ouvia, responde veementemente: “Dai a vós mesmo de comer” (cf. Mt, 14, 16). Nessa passagem podemos fazer algumas interpretações. A primeira, a instauração da fração do pão entre os povos; segunda, a responsabilidade que os líderes religiosos devem ter para com povo; terceira, a posição de Jesus e dos discípulos frente a sociedade.
Na Bíblia, nessa passagem, é a primeira vez que Jesus ergue os olhos ao céu, dá graças e distribui o pão e os peixes. Vede como é simbólico para nós essa partilha feita por Jesus, pois ensina-nos que devemos partilhar também. Não o que nos sobra, mas aquilo que temos, pois assim se faz o Reino de Deus. Ao dar graças a Deus, acreditamos que esse nos ensina que todo alimento é fruto da terra e do trabalho humano dado de graça, e se de graça recebemos, de graça também devemos dar. Aqui pode soar estranho, principalmente para aqueles que defendem o capital. Mas não aos olhos de Jesus, pois no Reino de Deus não há venda de mercadorias e trabalho escravo. Trabalham para subsistência, não para acumular riquezas.
A única coisa que deveríamos acumular é o amor para com os outros, e então entramos na segunda ideia dessa fração do pão. É função daqueles que estão a frente (pastores) mostrar isso ao povo, como funciona a lógica do Reino. E mais profundo ainda, todos os batizados devem ser essa voz profética que grita no deserto frente a um povo faminto. E aqui abrimos caminho para duas reflexões: um povo faminto espiritualmente e socialmente.
Jesus não é alheio a essas realidades, alimenta o povo com o pão espiritual ao pregar e falar do Reino para o povo de Deus reunido ali. E também com o pão terreno quando percebe que eles estão famintos, diz São Tiago:
Suponhamos que um irmão ou irmã andam seminus, sem o sustento diário, e um de vós lhes diz: ide em paz, aquecidos e saciados; mas não lhes dá para as necessidades corporais, de que serve? Igualmente a fé que não vem acompanhada de obras: está totalmente morta. (cf. Tg 2, 15 - 17)
E então entramos no terceiro tópico de nossa reflexão. Os discípulos queriam mandar o povo embora só com o pão espiritual, mas Jesus os repreendeu e disse que era função deles dar à aquelas pessoas alimento para que chegassem em casa. São Tiago entendeu bem. E a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) quer nos recordar disso. O tema da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano (2023) traz justamente esta ideia: Dai-vos vós mesmo de comer.
Diante da realidade sofrida do povo, a CNBB propõe esta reflexão para que tomemos consciência das mazelas sociais que vivemos, e que é nossa função como cristão olhar o mundo com os dois olhares, o social e o espiritual, pois um não se separa do outro. É pelo espiritual que percebemos as cruzes que o social traz, que mundo carrega. A mesma cruz que Jesus carregou, nós também carregamos, pois nós podemos beber do mesmo cálice que ele bebeu (cf. Mt 20, 23).
O cálice de Cristo é a cruz, e quando falamos de ficar com a cruz de Cristo não é para carrega-la para sempre, mas supera-la, ou seja, acabar com esse sistema de morte que vivemos. E é isso que a CF quer que reflitamos, parabéns ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e a CNBB que deu aval a tal campanha. Pois urge falarmos da fome, ainda mais num país que produz tanto alimento, e que inúmeras pessoas passam fome e se tornam reféns do sistema de morte capitalista. É possível acabar com essas misérias? Sim, para Deus nada é impossível (cf. Lc 1, 37). No entanto aqueles que tem um coração pessimista argumentam que isso não é possível que “pobre sempre tereis” (cf. Mc 14, 7). Utilizam uma fala de Jesus, quando esse vai retrucar Judas Iscariotes (esse estava roubando o dinheiro do caixa comum e gastando atoa, não tinha uma legítima preocupação com os sofredores ), para julgar o que fazem os militantes cristãos ou que fizeram, tais como os grandes nomes da Teologia da Libertação.
E existem os cristãos fatalistas, aqueles que anunciam a cruz como fim último, diz Boff:
Há uma forma de anunciar a cruz e a morte que deve ser radicalmente evitada: aquela que acaba, muitas vezes sem intencionar, por legitimar ou fatalizar tais abominações. Argumenta-se enganosamente que a história é urdida de sofrimento e morte e que não há como evita-los. Sempre foi assim, e assim é, e assim será
Mas não é isso que queremos e que cremos, o próprio fato do anjo dizer que para Deus nada é impossível deveria refutar tal fala. Mas não é o caso, ou talvez não querem a mudança. Pois isso implica numa cruz, e se não queremos carregar nem a nossa cruz pessoal, não iremos dar uma de Simão de Sirene e carregar a cruz do outro, e se não carregamos a cruz uns dos outros não seremos capazes de supera-las.
É nossa função, como seguidores de Jesus, ajudar o outro a superar seus sofrimentos e ressurgir para uma vida nova, a cruz não é fim ultimo do cristão, mas a ressureição, a vida. Deus não quer que soframos, que nos humilhemos, antes quer que vivamos bem, pois é para vida que ele nos chama. Não qualquer vida, mas uma vida boa que todos tenham seus direitos preservados. Daí a CF proposta pelo CONIC e CNBB, como pastores entendem que o povo sofre e que isso não é normal. Nunca foi. Normal é que todos tenham aqueles três T’s que o Papa Francisco fala: Teto, Trabalho e Terra.
Uma moradia digna, um trabalho que forneça sustento e condições de educação, saúde e lazer, e terra para se firmar tudo isso. Voltemos a Josué e a luta pela terra, pois precisamos te um lugar para nos estabelecermos. Tal como Gaia foi o que teve de firme no Caos, como nos ensinou a religião grega dos antigos. Como Pachamama é para os índios. E como é para nós cristãos, nossa casa comum, um lugar dado por Deus para que cuidemos e nos elevemos ao melhor do ser humano refletido num único homem: o mestre de Nazaré, filho do carpinteiro, refugiado e nosso irmão mais velho.
São Carlos de Foucauld, nosso irmão universal, rogai por nós.
*Seminarista da Diocese de Guanhães, 1º ano de Teologia, Seminário Maior de Diamantina-MG