O governo Temer está muito mais perdido do que estava o governo Dilma. Diferentemente do golpe de 64, em que a direita tinha um programa e tinha intelectuais que forjavam propostas de longo prazo, agora não se tem isso; trata-se de algo imediatista e voltado para destruir o governo anterior, sem nenhuma proposta, avalia o economista Guilherme Delgado.
Por Patricia Fachin
“É difícil de analisar o que o governo está querendo” com as propostas anunciadas para a economia na semana passada, diz Guilherme Delgado à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Por enquanto, as medidas “sinalizam mais uma reunião de marketing do que propriamente uma reunião de política econômica, porque não tem um ato normativo proposto ao Congresso, nem nota técnica que reflita ou explique essas decisões”, afirma.
Na avaliação do economista, dado o atual quadro de dois anos consecutivos de recessão na economia, e com uma “situação de desemprego aberto gravíssima”, que chega a “200 mil desligamentos formais por mês”, “a política de juros tem de ceder à necessidade de se dar alguns estímulos para recuperar a economia”.
Entre as alternativas que poderiam ser discutidas nessa conjuntura, Delgado chama a atenção para “algumas excrescências”, sobre as quais “reina absoluto silêncio”, entre eles, como explicar que “pessoas que pagam 27,5% sobre os salários se defrontem com titulares de rendimentos do capital que têm tributação zero num país que está carente de recursos dessa natureza. Temos de revisitar isso, como também é preciso revisitar o campo das faixas de tributação no imposto de renda, a gigantesca sonegação que alimenta a dívida ativa para com a União, para que se possa, no ajuste fiscal, criar o mínimo de justiça, porque ajuste fiscal não pode ser um nome fantasia”, adverte.
Outro ponto fundamental, menciona, é conter os juros da dívida pública. “Não vejo providências no sentido de reestruturar e reequacionar essa relação do sistema financeiro com o Estado. Esse parece um assunto interditado, que nem é discutido”. Para ele, alguma mudança tributária é necessária porque o déficit precisa ser solvido. Apesar de não considerar a CPMF a melhor alternativa tributária, Delgado afirma não ver “no horizonte como se poderia fazer qualquer outra coisa nova nesse campo abandonando os clássicos mecanismos mais simples de tributação que a CPMF contém, embora com distorções de outra natureza”.
O economista também defende um plebiscito para solicitar novas eleições gerais, e a discussão sobre a implantação do parlamentarismo. “Nas novas eleições, poderia se propor o parlamentarismo, onde a situação seria mais fácil de resolver. (...) O plebiscito poderia ser feito este ano para formalizar uma emenda constitucional e marcar as eleições para o ano que vem. Assim, o governo Temer se caracterizaria como um governo transitório, o governo Dilma se despediria, porque já acabou, e aí colocaríamos na população a responsabilidade de eleger novos representantes”.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor analisa o atual momento econômico e político do país após o afastamento da presidente Dilma?
Guilherme Delgado – O quadro de instabilidade política e econômica que havia antes do afastamento da Dilma não mudou, ou seja, não há estabilidade política nem econômica, até porque o campo das dificuldades é o mesmo — diria até que é maior, porque depois do afastamento dela se tem um quadro político-jurídico mais frouxo para se pensar a ordem institucional.
IHU On-Line – O governo interino de Temer anunciou que o déficit fiscal primário é de 170 bilhões e não de 96 bilhões, como apresentado no governo Dilma. Como analisa esses números?
Guilherme Delgado – No começo do governo Temer foi feita uma tratativa com estados e municípios no sentido de fazer uma renegociação da dívida, na qual houve mudanças de critérios e ingresso de recursos segundo a forma anterior. A grande diferença entre os números tem a ver com a renegociação das dívidas dos estados com a União, que todos acham muito bom, mas acontece que essa renegociação aumenta o tamanho do déficit primário. Portanto, não acho que a mudança no valor se deve a um cálculo errado, mas a formas novas de tratar a questão fiscal, que aumenta no curto prazo o tamanho do déficit primário.
É preciso deixar claro que se trata do déficit antes de considerar as despesas financeiras, porque o déficit nominal é muito maior. Considere-se um PIB em torno de 6,0 trilhões de reais. O déficit nominal é de 10 a 11% do PIB. Tem uma despesa financeira gigantesca, que é a rolagem do serviço da dívida, e essa é a parte principal do déficit brasileiro, portanto o déficit primário é apenas a ponta do iceberg.
"A crise conjuntural do orçamento e da política fiscal está sendo transformada em uma crise permanente"
IHU On-Line - Que avaliação geral faz do pacote econômico anunciado pelo governo Temer e por Henrique Meirelles?
Guilherme Delgado – As medidas anunciadas foram tomadas um dia depois da divulgação das gravações de Romero Jucá e, portanto, minha impressão foi a de que se tratou de lançar uma notícia diferente, positiva, de providências para desviar o assunto das gravações, porque, desde o anúncio das medidas econômicas, não saiu nenhum detalhamento de medidas normativas.
Fixação do gasto orçamentário segundo a inflação
A principal medida anunciada nesse pacote, que consiste na fixação de um limite correspondente à inflação anterior para o gasto orçamentário, nominalmente o gasto de saúde e educação, não deixa claro se a medida se refere somente a essas duas áreas ou não. Se for só em relação à saúde e à educação, tem de se revogar da Constituição uma meia dúzia de dispositivos que tratam dos percentuais de aplicação nessas áreas. Se a medida se aplica a outros setores, como a previdência, teria de estar especificado.
Como acabamos de ver, o iceberg é a despesa financeira, mas sob a despesa financeira não há limites e, portanto, essa medida anunciada é ineficiente para enfrentar o tamanho do problema que se tem. Se a medida limitar gastos com saúde e educação, isso significa que se colocará na Constituição um dispositivo para tratar de um assunto conjuntural, ou seja, a crise conjuntural do orçamento e da política fiscal está sendo transformada em uma crise permanente. É como se dissessem: não se põe um centavo a mais para construir novas escolas, hospitais, tratar de doentes, construir postos, porque não tem investimento. E mesmo as despesas correntes, de custeio, se passarem do limite da inflação, serão cortadas. Isso simplesmente paralisa a política social. Esse tipo de cogitação é incompatível com as necessidades do sistema público de saúde e educação. Pior ainda será se isso for estendido a outros setores, como o da previdência. Esse setor paga benefícios acumulados e se colocarem um limite nele, mesmo com emenda constitucional, seria uma emenda inconstitucional, porque vai ferir o direito adquirido dos aposentados e pensionistas.
É difícil de analisar o que o governo está querendo com essas propostas, porque na verdade elas sinalizam mais uma reunião de marketing do que propriamente uma reunião de política econômica, porque não tem um ato normativo proposto ao Congresso, nem nota técnica que reflita ou explique essas decisões. Apesar disso, a mídia repercute tudo sem cobrar mais detalhes, afirmando que é por aí mesmo.
Captura de recursos do BNDES
A outra medida anunciada, que consiste em capturar recursos do BNDES, é a clássica pedalada fiscal e foi por isso que, supostamente, a Dilma foi impedida. Ou seja, o BNDES tem um contrato com o Tesouro, isto é, o Tesouro empresta dinheiro ao BNDES, que por sua vez empresta a terceiros como capital de longo prazo, que retorna aos poucos. Contudo, o que o governo fez foi dizer que queria o dinheiro de volta, mas só se pode devolver o dinheiro nos prazos contratuais. O fundo do BNDES não é de disponibilidade do Tesouro; o que é de disponibilidade do Tesouro são os aportes de pagamento do BNDES. Ou seja, se o Tesouro empresta um valor X ao BNDES, o banco devolverá isso em dez ou quinze anos, que é o tempo de retorno do capital de empréstimo. Essa é uma medida mal explicada e dada como se fosse solução do déficit fiscal.
Outra medida é a diminuição do fundo soberano do pré-sal, mas essa e outras medidas não parecem indicar que exista algo estudado. Sente-se apenas a compulsão de apresentar um rol de medidas, com frases de efeitos, mas não se governa assim.
A outra medida que anunciarão para breve, em julho, é da reforma da previdência, com desvinculação de benefícios da previdência e idade única. No pacote, a reforma da previdência ainda é uma conjectura; não tem nada anunciado.
IHU On-Line – Se essas medidas não contribuem para enfrentar a crise nem para estancar o déficit fiscal, o que poderia ser feito na atual conjuntura de crise econômica? O senhor sempre fala da necessidade de baixar a taxa de juros. Vê perspectiva de que isso vai ocorrer?
Guilherme Delgado – Antes havia uma inflação de 10% e hoje o governo está trabalhando com uma inflação de 7%, o que significa que ela caiu três pontos percentuais. Então, alguma folga tem de se dar na política monetária, porque ela não pode ser absoluta, em relação a qual todas as demais políticas têm de ceder, até porque ela conduz o sistema para uma determinada direção que, no caso, não é desejável.
Estamos numa situação de desemprego aberto gravíssima, pior do que a do ano passado, que teve 1,5 milhão de desempregos formais; este ano a trajetória é maior. Portanto, a política de juros tem de ceder à necessidade de se dar alguns estímulos para recuperar a economia — esse é um caminho, mas por ele também não se tem um alívio do déficit nominal, que é o pior da história.
Do ponto de vista tributário, temos algumas excrescências funcionando e sobre as quais reina absoluto silêncio. Por exemplo, o sistema da seguridade social se alimenta da contribuição sobre o lucro líquido, mas as pessoas se esquecem de mencionar que desse lucro líquido são excluídos os dividendos, que têm tributação zero. Como se pode explicar que pessoas que pagam 27,5% sobre os salários se defrontem com titulares de rendimentos do capital que têm tributação zero num país que está carente de recursos dessa natureza.
Temos de revisitar isso, como também é preciso revisitar o campo das faixas de tributação no imposto de renda, a gigantesca sonegação que alimenta a dívida ativa para com a União, para que se possa, no ajuste fiscal, criar o mínimo de justiça, porque ajuste fiscal não pode ser um nome fantasia. Tem de haver alguma justiça tributária nesse processo para ter legitimidade para pedir a outros setores, que serão objeto de corte, a ideia de uma certa equanimidade e ao mesmo tempo uma equanimidade que aponta para proteger os setores que são mais débeis na cadeia social.
Por exemplo, não se pode cortar benefícios de salário-mínimo para pessoas que estão num patamar básico de sobrevivência, não se pode cortar o Bolsa Família nem tomar atitudes como a que o Ministro da Fazenda anunciou, de capturar o fundo de empréstimo do BNDES, porque é o fundo que financia investimentos. Se o próprio governo quer lançar um programa de concessões de obras públicas, elas precisam de financiamento e capital de longo prazo. Se não há possibilidade de dispor desse capital, eles vão recorrer a capitais muito mais caros, que tornam a concessão inviável.
Então, o que percebo nesse momento é que o governo Temer está muito mais perdido do que estava o governo Dilma, que já estava perdido. Diferentemente do golpe de 64, em que a direita tinha um programa e tinha intelectuais que forjavam propostas de longo prazo, agora não se tem isso; trata-se de algo imediatista e voltado para destruir o governo anterior, sem nenhuma proposta. O plano econômico do PMDB não serve para nada; é só marketing.
IHU On-Line – A que atribui essa falta de propostas?
Guilherme Delgado – Se a economia não voltar a crescer, e se não há uma trajetória interna e externa para relançar investimentos e não há o mínimo de articulação social e econômica de uma nova hegemonia, as crises econômica e política vão ladeira abaixo. A recessão brasileira não é comum; já está no segundo ano, a taxa de desemprego aberto está na faixa de 200 mil desligamentos formais por mês e a agenda do PMDB não aponta nenhum caminho no sentido de recuperar a economia.
Eu me sinto desconfortável em falar isso, porque não quero ver a situação ir ladeira abaixo, mas como o governo aposta no limite da inflação do ano anterior, ou na proibição do BNDES de fazer novos financiamentos, não sei o que tem pela frente a partir desse rol de restrições.
Por outro lado, no que se refere à evolução da dívida, não vejo providências no sentido de reestruturar e reequacionar essa relação do sistema financeiro com o Estado. Esse parece um assunto interditado, que nem é discutido. No ano passado tivemos um déficit nominal de 9,3% do PIB, sendo 9 pontos percentuais de despesa financeira e 0,3 de despesa fiscal, e mesmo assim não se discute o sistema financeiro. A despesa financeira é criada autonomamente pelo Banco Central, sem apreciação do Congresso, o que é uma excrescência, mas também não se discute isso.
O artigo 153 da Constituição – que, segundo as más línguas, o ministro Nelson Jobim teria dito que foi um dos dispositivos introduzidos na Constituição clandestinamente, sem votação - determina que o serviço da dívida pública é insuscetível de emenda pelo Congresso, portanto, é uma decisão do Banco Central. Isso é um absurdo do ponto de vista do Estado de direito e deveria ter sido mudado. O limite da dívida pública é, em todos os países, de competência do Congresso, que é a casa que tem a legitimidade de tratar de tributação e gastos.
IHU On-Line – Vislumbra mudanças no Banco Central com a escolha de Ilan Goldfajn?
Guilherme Delgado – Sobre os nomes escolhidos, a informação que tenho é a de que são nomes de preferência do mercado financeiro, que aposta na lógica do retorno privado dos capitais. Ao mesmo tempo, não vejo nos intelectuais orgânicos conservadores uma formulação de longo prazo, como havia em 1964.
O grupo político, econômico, parlamentar e midiático que promoveu a campanha de desestabilização do governo Dilma, como também do impeachment, foi muito eficiente e derrotou o governo com um golpe branco. Agora, esse mesmo grupo, para governar, não parece ter uma estratégia de médio prazo para sair do impasse político e econômico em que a própria presidente se meteu. E ela reconheceu, em entrevista à Carta Capital, que em 2015, ao apostar no ajuste da forma que fez, agravou terrivelmente a recessão e a perda de apoio político.
Agora, o plano B, que seria um projeto de reestruturação para tirar o país desse atoleiro, não tem absolutamente nenhuma evidência de que as medidas anunciadas na semana passada tenham possibilidade de apontar nessa direção. Pelo contrário, podem piorar o quadro de recessão para um quadro de depressão e aí a situação pode ficar ainda mais incontornável.
Sou bastante reticente a essas medidas de aprofundamento do ajuste fiscal nesse formato, na linha de redução significativa da presença do governo, com liberalidade financeira, na expectativa de que venha um governo salvador; não acredito nisso. O que vem é mais instabilidade com todas as mazelas associadas a tal.
IHU On-Line - Seria o caso de retomar a CPMF?
Guilherme Delgado – Alguma mudança tributária é necessária num ajuste fiscal real porque, de fato, existe um déficit primário que precisa ser solvido. A solução imediatista do governo Dilma era a recriação da CPMF, que foi excluída no governo Lula e fez falta nas contas sociais. Creio que ou a CPMF ou alguma outra mudança mais associada à justiça distributiva precisaria vir, porque não se faz, nessa conjuntura, uma política de reestruturação econômica piorando ainda mais o quadro distributivo, nem somente através de cortes, que agravam mais a recessão e a perda de receita tributária da União e não resolvem o problema.
Preferencialmente, não deveria ser a CPMF, mas não vejo no horizonte como se poderia fazer qualquer outra coisa nova nesse campo abandonando os clássicos mecanismos mais simples de tributação que a CPMF contém, embora com distorções de outra natureza. Mas precisa de algum tipo de tributação para sair desse impasse.
Por enquanto, a política do governo Temer ainda continua produzindo factoides e não sabemos exatamente o que é. Do ponto de vista político, sinto que o campo midiático começou a investir na desestabilização do Temer – não estou entendendo aonde querem chegar – e temos duas peças contraditórias no jogo: uma presidente em processo de impeachment, que não tem condições de governar mesmo que volte, e um vice-presidente que está cada vez mais se revelando um governante “ingovernante”. Precisamos sair disso e alguma responsabilidade política é necessária: talvez um plebiscito de eleições gerais que nos dê possibilidade de pensar para frente. Eu me sinto angustiado de analisar e não ver como vamos sair daqui para frente com as alternativas Dilma/Temer.
IHU On-Line – Por que novas eleições significariam uma saída? O que poderá surgir com novas eleições?
Guilherme Delgado – De imediato seria preciso um plebiscito para pedir permissão de fazer novas eleições gerais, para que no ano que vem ou no final deste ano se fizessem novas eleições. Mas se continuar do jeito que está, com denúncias da Lava Jato sobre o governo, não será possível governar. A ideia de desestabilização permanente, que está na judicialização e politização judiciária, precisa ser limitada, porque o processo precisa ser mais sério. Ao mesmo tempo não se sabe qual é o grau de veracidade e legitimidade do que está sendo divulgado. Temos de ter discernimento ético e político para sair desse padrão de instabilidade.
Nas novas eleições, poderia se propor o parlamentarismo, em que a situação seria mais fácil de resolver. Mas se falar em parlamentarismo com esse Congresso, as pessoas ficam com ódio. Então, para começar com uma nova etapa, precisaríamos de um novo Congresso eleito. Agora, o plebiscito poderia ser feito este ano para formalizar uma emenda constitucional e marcar as eleições para o ano que vem. Assim, o governo Temer se caracterizaria como um governo transitório, o governo Dilma se despediria, porque já acabou, e aí colocaríamos na população a responsabilidade de eleger novos representantes.
Estou conjecturando porque não consigo divisar uma alternativa de governo Temer até 2018 com esse grau de envolvimento do PMDB com as tratativas na Petrobras, com a impossibilidade do governo do PT de governar, e não podemos ficar sem solução mais dois anos, com a crise econômica se aprofundando; aí haverá um caldo para golpistas de toda natureza.
Fonte: IHU On-Line