
Uma das filhas de Rosa Lobato de Faria, que hoje faria 80 anos, já tinha sido avisada pela mãe de que iria ter muito trabalho a organizar os seus papéis. E foi verdade. Ana Margarida Rebelo de Sousa e os seus três irmãos encontraram poemas escritos em agendas, cadernos, guardanapos, bilhetes. Enquanto tentavam organizar o espólio da escritora (1932-2010) que irão doar à Sociedade Portuguesa de Autores, receberam a proposta de Cristina Ovídio (Clube do Autor) de editar Alma Minha Gentil. Uma curta narrativa que a poeta, guionista e actriz tinha manifestado vontade de publicar.
"Quisemos honrar o seu desejo e prosseguimos com a ideia", diz ao PÚBLICO a filha Ana Margarida Rebelo de Sousa. E o livro foi lançado na quarta-feira em Lisboa.
Começa assim: "Luís Vaz saiu pela porta dos fundos, que dava acesso à instalação dos criados: uma camarata com oito enxergas e uma bica que pingava toda a noite para um tanque de pedra. O que era ele senão um criado?"
A decisão de a obra ser ilustrada já tinha sido tomada antes, por Rosa Lobato de Faria e Cristina Ovídio, porque o texto é curto: "A escolha de Pedro Sousa Pereira deixou-nos muito contentes. As imagens dão-nos uma outra visão, numa linguagem lúdica e fresca", diz Ana Margarida.
Nenhum dos quatro filhos (Teresa e João Sacchetti, Nuno Franco e Ana Margarida) estranhou que o protagonista da obra fosse Camões, pois conheciam bem o fascínio da mãe pelo poeta. Muitos dos livros sobre ele que herdaram estão cheios de anotações, comentários, emendas, remissões. "Na altura do antigo 5.º ano, contávamos sempre com a ajuda dela. Declamava para nós e tinha um interesse muito grande pela vida de Camões, que é muito pouco conhecida. E lá nos ia contando o que sabia", recorda a filha.
Escritora compulsiva
Uma outra obra da autora foi também lançada recentemente, A Noite Inteira Já Não Chega (Guimarães, Babel), e reúne poemas escritos entre 1983 e 2010. "A nossa mãe era uma escritora compulsiva. Acordava e "aqui vai disto"", continua Ana Margarida, com voz divertida. "Encontrámos poemas por todo o lado", mas assegura que tudo o que está a ser publicado seria autorizado por ela. "Sabíamos logo quais os textos que não queria mesmo que fossem divulgados. "Isto não presta", "este, nem pensar!" Por isso, só pode estar satisfeita. Ela bem me tinha avisado de que eu ia ter muito trabalho em organizar os seus papéis." Valeu-lhe a ajuda do marido, Pedro Rebelo de Sousa, em todo o processo de organização e memória, e de Vasco Medeiros Rosa, que organizou a edição da antologia de poesia.
Sobre Alma Minha Gentil, escreve José Jorge Letria no posfácio: "Alma Minha Gentil, que nos recorda o ambiente trágico de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, bem podia ter sido o embrião de uma peça de teatro, de uma ficção televisiva ou cinematográfica, caso houvesse em Portugal condições para a concretizar e caso Rosa Lobato de Faria se tivesse demorado mais tempo entre nós, seus leitores e seus amigos, para testemunharmos a pujança e pluralidade do seu talento criador."
O presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) informou no lançamento que "o espólio de Rosa Lobato de Faria, devidamente tratado e inventariado, vai ser doado pela família à SPA e que terá uma exposição dedicada à sua vida e obra na galeria desta instituição no Outono deste ano".
O facto de o livro ser ilustrado faz com que seja remetido para a literatura infanto-juvenil, o que não é verdade. Mas também não deixa de o ser, já que não há uma idade ideal para se ler um amor trágico descrito em prosa poética.
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