Onde está o progresso numa cultura que deixa a responsabilidade da memória para pastilhas de plástico?
(Foto: Ilustração/Max Velati) |
Por Max Velati*
Todos os aparelhos eletrônicos modernos têm memória. Compro cartões e chips de memória em qualquer boteco e posso arquivar dados em um reino mítico da Internet batizado de "nuvem", o que me parece um nome bem apropriado. Se esta coluna fosse dedicada a celebrar as conquistas e as promessas mais recentes da tecnologia - e já escrevi coisas desse tipo para sobreviver - eu seguiria feliz com você por uma infovia alucinante, sinalizada por caleidoscópios de plasma e fibras óticas, mas vamos passar longe de tudo isso. Esta coluna é escrita com outro tipo de responsabilidade e como o nome sugere, é um plano para escapar.
A idéia é fugir dos tentáculos de aço controlados pela "Máquina" e o inimigo terrível que chamo de "Máquina" é a forma concreta e cruel da noção abstrata daquilo que chamamos de "Civilização". Com mais de dez mil anos de idade a Civilização é um patrimônio largo, alto e profundo, uma combinação vertiginosa de oceano, catedral e abismo e que por suas dimensões guarda contradições perigosas. Nestas pequenas conspirações semanais divido com você as minhas inquietações sobre tudo isso e traço o meu plano para escapar das artimanhas da Máquina, armadilhas perversas que frequentemente estão disfarçadas de progresso.
Nesta sexta-feira, a armadilha da Máquina é que a memória deixou de ser um milagre biológico para ser um produto vendido em balcão.
Na origem indo européia "men/mon" significava "pensar". O termo passou ao latim como "memor" com o sentido de "atento", "atenção plena" e daí veio a nossa "memória", um fenômeno que ainda não foi devidamente explicado pela Ciência, mas agora já pode ser tingido de diversas cores, empacotado e trocado por um punhado de dinheiro na esquina.
Ricos, sofisticados e felizes os povos plugados e expandidos no seu potencial humano, graças a estas pequenas próteses digitais que dão ao velho e limitado cérebro o conforto de uma espreguiçadeira. Com arrogância e compaixão teatral olhamos o passado, imaginando como era difícil e bruta a vida sem as modernas memórias auxiliares. Pobres, rudes e infelizes os humanos que precisavam guardar no próprio organismo tudo o que fosse importante.
Um bom exemplo da arte esquecida de guardar o conhecimento apenas em si mesmo era a formação dos poetas-sacerdotes na Irlanda por volta do século V. O estudante deste ofício obrigava-se a memorizar trezentos e cinquenta tipos diferentes de métrica poética e doze anos era o mínimo para a formação completa até o título de rei-bardo. Esta graduação significava que o poeta-sacerdote havia memorizado centenas de linhagens importantes, canções de todos os tipos, receitas médicas e culinárias, rituais, fatos e dados históricos complexos, além de ´sete vezes cinquenta´ épicos, conhecendo tudo em detalhes, cada termo, cada personagem, cada lugar mencionado.
Concluída a sua formacão, deveria estar apto a recitar de memória e explicar tudo o que pedissem com apenas alguns minutos de preparacão. Um pobre, rude e infeliz poeta-sacerdote, ainda que estivesse nu na floresta, teria a posse de todo o patrimônio de sua cultura e poderia transmitir este acervo ao próximo discípulo, o elo seguinte desta corrente de conhecimento.
Entre os pobres, rudes e infelizes bárbaros medievais era tal a importância da posse deste patrimônio, que era permitido matar em batalhas até mesmo reis, rainhas e príncipes, mas absolutamente proibido ferir por qualquer razão um poeta. O produto da memória era esta prova extrema de respeito e que estava em vigor em uma época que chamamos de "Idade das Trevas".
Fico me perguntando onde está de fato o progresso e a luz em uma cultura que deixa toda a responsabilidade da memória para pastilhas de plástico, dispensa muito aliviada a presença física de professores na tarefa de educar, substitui todos os vínculos afetivos por teclas e telas de LCD e ainda se orgulha de todas estas conquistas.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
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