O ‘Caso Snowden’ multiplicou as vendas do livro de George Orwell em todo o mundo.
Orwell no inferno de Dante (Foto: Arquivo) |
Por Marco Lacerda*
Os críticos que, no passado, disseram que ‘1984, a novela de George Orwell, estaria coberta de mofo antes do século 20 terminar agora seriam forçados a considerar a forma clarividente como o escritor retratou o totalitarismo do Leste e profetizou o controle cibernético da privacidade no Ocidente. Não surpreende, portanto, que o caso Edward Snowden – o analista americano que revelou ao mundo escabrosos segredos de Estado do seu país – tenha feito disparar as vendas da novela que Orwell publicou em 1949, um ano antes de morrer.
‘1984’ tem a virtude de provocar algo incomum nas novelas políticas: medo. Foi o que sentiu o primeiro editor do livro, Fredic Warburg, que a descreveu como “um estudo sobre o pessimismo salvo pela idéia de que se um homem pode conceber ‘1984’, certamente pode ter a vontade de evitar-lo”. Esse foi o efeito que o livro provocou nos que o leram sob uma ditadura. A obra de orwellianos como o polonês Czeslaw Milosz e o checo Vaclav Havel atesta isso ao mesmo tempo em que desmente a idéia do próprio Orwell de a imaginação literária, como alguns animais selvagens, não se reproduz em cativeiro.
‘1984’, cujo título provisório foi ‘O último homem da Europa’, conseguiu algo ao alcance de poucas obras do gênero: converter-se num criadouro de metáforas até para aqueles que nunca o leram. Quem disse que os ministérios da Defesa – antes ministérios da Guerra – um dia não serão chamados de ministérios da Paz? Apesar da presença perturbadora em suas páginas da Nova Língua, da Polícia do Pensamento e do Ministério da Verdade, o grande triunfo do livro foi a criação do Big Brother (Grande Irmão) para referir-se a ditadores que se apresentam como pais do povo que subjugam e que se tornou um programa de TV visto em todo o mundo. Algo como se os católicos começassem a batizar seus filhos como Caim.
Na sede da BBC, em Londres, havia uma sala destinada às reuniões dos Serviços Orientais da emissora, das quais participava Orwell, poliglota, nascido na Índia e antigo membro da polícia britânica na Birmânia – cargos que o imunizaram para sempre contra o imperialismo. Ironicamente o número da sala terminaria por batizar o elemento mais arrepiante de 1984: a sala 101.
Mais que as aberrações fabricadas naquele escritório – “a ignorância é a força” – mais que os neologismos – o contrário de bom não é mau, mas não-bom – mais até que o próprio Grande Irmão, a sala 101 é, apesar do pouco que se fala dela, o momento culminante de um pesadelo: a falta total de intimidade. O que acontece na sala 101? Impossível contá-lo sem revelar as entranhas da obra. Mas pelo menos pode-se dizer que é o lugar mais medonho da literatura universal, um inferno com o qual nem Dante sonhou.
Qualquer governo com acesso às nossas comunicações digitais e dinheiro para pagar por elas ao Google e companhia ilimitada, poderia dar-nos tratamento personalizado nas salas 101 da vida. O pior é que nos tornamos cúmplices dessa invasão de privacidade ao trafegarmos com suposta liberdade pelas redes sociais, essas passarelas que mentes bem treinadas há muito transformaram em ratoeiras.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal.
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