O livro do monge ressalta as qualidades da memória, da leitura e da meditação.
(Foto: Ilustração de Max Velati) |
Por Max Velati*
Esta coluna é a nossa pequena conspiração semanal, uma reflexão para descobrir caminhos para escapar da Máquina, esse inimigo terrível que se disfarça de Civilização e ardilosamente nos rouba a Humanidade.
Já disse antes nesta coluna que a trilha que nos leva para longe da Máquina é um caminho mal sinalizado e por isso temos que prestar homenagens aos poucos que se ocuparam de marcar a trilha. Nesta sexta-feira, acompanhamos um desses pioneiros, um monge que na solidão de sua pequena cela traçou para nossa segurança um caminho que cobre territórios imensos.
O monge levantou-se com a noite ainda densa. Calculou que teria umas duas horas antes de ter que recitar a "Prima". Esfregou com vigor as mãos e o rosto para espantar o frio e acendeu o toco de vela, poupada especialmente para aquelas horas extras de trabalho.
A pequena chama rasgou a escuridão e a luz espalhou-se pelas paredes frias da pequena cela de pedra, igual a muitas na Abadia de São Vítor. A austeridade morava ali há muito tempo, antes mesmo da capela ocupar aquele subúrbio de Paris e muito antes da construção do mosteiro e da escola. Por uma razão misteriosa aquele local na margem esquerda do Sena servia de abrigo para místicos há mais de um século.
O frio prometia testar a disciplina e a resistência do monge, mas ele tinha pouco mais de trinta anos e pretendia usar todo vigor e entusiasmo na tarefa que o aguardava. Sobre a pequena mesa de trabalho dispôs as outras ferramentas que também pretendia usar: folhas de pergaminho de ovelha, um lápis de chumbo para traçar as linhas-guia, uma régua de ferro, um recipiente de chifre bem abastecido com a tinta feita com a receita do monge Teófilo, a faca de escriba e três penas de ganso cuidadosamente apontadas na noite anterior.
O monge sentou-se.
Por alguns instantes, examinou com a mão direita a superfície imaculada da primeira folha de pergaminho, preparada com o "lado da carne" bem raspado. A luz da vela fez dançar sombras antigas sobre o couro polido e ele considerou a idéia de deixar a tarefa para mais tarde, mas sua disciplina veio em socorro, porque percebeu que aquilo era uma tentação. Respirou fundo como se Deus habitasse o ar frio daquela cela e então pegou a pena com mão firme. Mergulhou a haste branca, nova, sem pecado no líquido que cheirava a enxofre e tocou o pergaminho com a ponta da pena carregada de tinta, rezando para que pelo sulco da pena escorresse um rio com a nascente na Misericórdia de Deus.
Sentindo a aprovacão divina na mão e no corpo, agora aquecido e concentrado, o monge fez escorrer da pena as primeiras palavras:
"De origine Artium
Omnium expetendorum prima est sapientia, in qua perfecti boni forma consisti".
Da origem das Artes
De todas as coisas a serem buscadas, a primeira é a Sapiência, na qual reside a forma do bem perfeito.
Muitas noites como aquela e cento e vinte e seis páginas depois, a obra estava concluída. O autor escreveu como título "Didascalicon - de Studio Legendi", aprovando o costume da época de um título grego e um subtítulo em latim.
Foi assim que o monge agostiniano conhecido como Hugo (da Abadia) de São Vítor fez sair de sua pena o livro "Didascalicon - A Arte de Ler".
O conteúdo da obra está dividido em seis partes: três livros sobre o conhecimento das coisas do Homem pela leitura dos escritos literários e três partes dedicadas ao conhecimento de Deus pela leitura da Sagrada Escritura.
Didascalicon oferece respostas preciosas e nos convida a percorrer um caminho que nos aproxima de Deus, mesmo que não tenhamos fé, mesmo que não acreditemos em religião, mesmo que o nosso único desejo seja escapar da Máquina.
Didascalicon assumiu em seu tempo posições perigosas. Escrito no início do século XII, Hugo de São Vítor mostrou coragem ao deixar claro que a Filosofia e a Teologia eram dois galhos da mesma árvore. Enquanto outras obras da Igreja trabalhavam para cavar e deixar mais fundo o abismo que separava a Filosofia da Religião, Hugo de São Vítor citava com entusiasmo diversas fontes fora da Igreja, tais como Platão, Pitágoras e tratados herméticos egípcios, incluindo o celebrado Asclépio.
Para o domínio da Arte de Ler, uma arte hoje tão necessária e tão negligenciada, o monge recomenda analisar o texto em três níveis: frase, sentido e pensamento. Na "frase" temos palavras organizadas para que tenham sentido. A partir do "sentido" temos um significado acessível. No terceiro nível temos o "pensamento", o caminho certo para um entendimento mais profundo, um despertar que pode ser alcançado por meio de um esforço de interpretação realizado pelo leitor. E a palavra "esforço" aqui tem um significado que faz toda a diferença. Em geral, não sabemos ler e não sabemos o que lemos. E mais raramente ainda buscamos na leitura algo além do texto e quase nunca buscamos a Sabedoria.
A Máquina sabe o quanto nos pesa, o quanto nos custa e o quanto nos dói o esforço pessoal.
Didascalicon é um presente generoso e oferece indicações seguras para enfrentar a Máquina. Recomendando acolher a vida com tudo o que ela tem, como a necessidade do trabalho, o presente do amor, o alívio da cura e o compromisso da vigília, Hugo de São Vítor nos garante - e por experiência própria, pois viveu o que pregou - que "no trabalho você faz, no amor você aperfeiçoa. Na cura você provê, na vigília você preserva".
A razão para fazer nesta coluna esta pequena homenagem ao grande Hugo de São Vítor, é porque de alguma forma Didascalicon se apresenta como um manual para escapar da Máquina, uma rota de fuga, um mapa bem traçado para que os vigias da Máquina nos percam de vista, para que as terríveis engrenagens não consigam mais triturar a semente de Sabedoria que todos nós recebemos ao nascer. O livro do bom monge ressalta as qualidades da memória, da leitura e da meditação, três temas já destacados aqui no Rota de Fuga e três armas poderosas para usar contra a Máquina.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
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