sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O que aprendi olhando para o chão

O lixo no chão - e não nas lixeiras - é uma evidência de que nem o treinamento básico foi bem sucedido.


(Foto: Ilustração de Max Velati)
Por Max Velati*

Há uma diferença fundamental entre o treinamento e a educação. O treinamento exige que o indivíduo  execute tarefas do modo que aprendeu para que os resultados sejam satisfatórios. Do ponto de vista do treinador, isso significa que não preciso conhecer o meu aprendiz, não preciso saber o que ele sente sobre a vida e nem mesmo prepará-lo para o mundo. Se ele está em treinamento deve apenas seguir o meu roteiro para um trabalho específico e será avaliado unicamente pelos resultados.

A educação tem outra abordagem e outros objetivos. Para educar o meu aprendiz, devo saber quem ele é, o que quer fazer e de que modo posso ajudá-lo a fazer o que quer para seu próprio benefício e para benefício do mundo, a começar de hoje e a começar pelo lugar onde o meu aprendiz está.

Com uma frequência assustadora, o treinamento é deficiente nas duas pontas: o treinador não foi bem treinado e passa adiante as suas falhas. E com frequência ainda mais assustadora - e de modo muito mais nocivo -, a educação sofre do mesmo mal. Pais e professores mal educados passam adiante as suas deficiências e para avaliar os danos causados por este dominó perverso, basta olhar ao redor, ver TV ou ler os jornais.

Apesar das diferenças fundamentais, o treinamento e a educação possuem vínculos. É que a educação exige alguns tipos de treinamento, mas vai muito além disso. Aprender a ler é um treinamento, mas a verdadeira educação consiste em aprender a fazer bom uso do que se leu, ter uma opinião válida a respeito do conteúdo, assimilar tudo isso em termos práticos para a vida para benefício próprio e da comunidade.

Se o treinamento é falho, dificilmente a educação será bem sucedida. Em termos simples: se mesmo depois de muitos anos de treinamento um aluno chega à universidade sem saber ler ou sem saber cálculos básicos de matemática, dificilmente se tornará o professor, o médico, o arquiteto ou o engenheiro que deveria ser. Se o sistema educacional conseguiu promover até às portas da universidade um aluno com tais deficiências, podemos suspeitar que o sistema educacional também falhou, - talvez perigosamente - em outras áreas essenciais e esta é a reflexão da coluna de hoje. 

Há dois anos, dei um curso rápido em uma universidade e aprendi que os alunos (de três turmas diferentes) seguiam o mesmo padrão. Toda vez que eu apresentava uma tarefa que deveria ser executada individualmente, a reação geral se desenvolvia nas seguintes etapas:

Primeiro, a turma questionava a necessidade da tarefa. A insatisfação geral poderia ser resumida com a pergunta: "Precisamos mesmo fazer isso?" Diante das minhas explicações e sem poder rebater os meus argumentos entrávamos então na segunda etapa e que consistia em negociar o prazo de entrega. Era a fase do "Precisamos mesmo fazer isso tão rápido?" Neste ponto, sempre me obriguei a ouvir os argumentos e havia espaço para negociar, mas nunca nos prazos que gostariam. Ficava sempre claro para mim que queriam adiar ao máximo o trabalho. Não era uma questão de agenda apertada, mas uma resposta mecânica e coletiva que determinava como regra de ouro neste tipo de negociação "adiar sempre e sempre ao máximo qualquer tarefa".

Diante do que parecia ser um problema inevitável e agora com um prazo fixado, os alunos seguiam rumo à terceira etapa e que consistia em encontrar atalhos, tornar a tarefa menor, mais leve e mais fácil. A pergunta que neste ponto me faziam era: "Podemos fazer o trabalho em grupo?" A idéia por trás desta estratégia era escapar da responsabilidade e do "grande" esforço individual, reduzir a participação ativa no próprio desenvolvimento.

Sempre me espantei ao perceber que ninguém ali era capaz de fazer uma relação direta entre o diploma e o verdadeiro domínio da profissão. Para todos e para cada um o diploma era o fim desejado, mas este destino deveria ser buscado pelo caminho mais fácil, pela via mais curta e pelo menor esforço porque afinal o mundo é dos espertos, meu chapa!

E assim entrávamos na quarta etapa e que indicava a índole da turma, a disposicão real para a educação, porque era a etapa de questionar a validade da tarefa. O resumo da insatisfação não era mais o inicial "Precisamos fazer isso?", mas algo mais profundo e generalizado, perigosamente mais próximo do "Será que precisamos mesmo disso?".

Conversando com professores de verdade, gente com uma vida inteira dedicada à educação, ouvi histórias sobre o que ocorre nas etapas seguintes ou como uma turma passa facilmente do "Será que precisamos mesmo disso?" para o "Será que precisamos mesmo de você?". Com este raciocínio e esta motivação, os alunos se organizam em campanhas com abaixo-assinado e reclamações formais para expulsar este ou aquele professor mais exigente.

Nos Estados Unidos conheci alguns professores e aprendi que lá a primeira providência que tomam depois da licença para ensinar é o registro em um sindicato. É muito comum um professor ser processado pelos pais de um estudante que perdeu média sob a alegação de que uma nota baixa poderá traumatizá-lo para o resto da vida. Com a proteção legal dos sindicatos, os professores se sentem mais seguros avaliando provas e os pais pensam duas vezes antes de qualquer medida legal. Não fosse isso, os professores enfrentariam um dilema: passar mais tempo nos tribunais do que nas salas de aula ou desistir para sempre de usar a caneta vermelha.

Depois desta longa reflexão você pode estar se perguntando como é possível saber se hoje as escolas estão educando de verdade.

Há um modo de descobrir isso em dois segundos: olhe para o chão.

O lixo no chão - e não nas lixeiras - é  uma evidência concreta de que nem mesmo o treinamento mais básico foi bem sucedido.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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