Assim como pingüins, elefantes e pandas, a arte da conversa está em extinção.
(Foto: Ilustração Max Velati) |
Por Max Velati*
Um papiro sobre Alquimia de um autor anônimo e datado do século III descreve assim a criação do mundo: "Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo...Quando ele gargalhou, fez-se a luz...Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo e pouco antes da sétima gargalhada, Deus inspira profundamente e então ri tanto que chora e de suas lágrimas nasce a alma".
Seja riso divino ou humano, o humor ainda guarda os seus mistérios.
Satírico ou grotesco, burlesco ou cáustico, o humor desdobrou-se entre nós em tantas faces que Edmund Berger, especialista no assunto, já tinha estabelecido em 1956 pelo menos 80 teorias sobre a natureza e a origem do riso. Por tudo isso não é difícil entender o papel do humor em uma sociedade, mas dentre todas as suas variantes destaco nesta sexta-feira a sua função de denúncia, a reponsabilidade que a graça muitas vezes assume de colocar o dedo no ponto central de nossos problemas e então fazer cócegas. Neste caso, o ponto que o dedo escolhe faz toda a diferença, pois uma piada bem colocada pode provocar uma reflexão que nem o sermão mais inspirado despertaria.
O riso brota sem que percebamos. Nasce de um ponto misterioso da alma, emerge e depois, flutuando ali na consciência, mostra que a origem da graça está no ridículo da realidade. Rimos porque tivemos um encontro com uma verdade coberta por camadas de vernizes sociais e que quando exposta mostra o absurdo de certos gestos e comportamentos. Rimos porque foi a única resposta possível diante de uma dessas loucuras da existência e que até um segundo antes da piada estava habilmente escondida.
É evidente que isso não se aplica a qualquer piada, mas certamente é o que sinto em relação a um vídeo do grupo Porta dos Fundos. Contar aqui o que este sketch mostra não vai estragar a piada pelo simples fato de que não há piada. O engraçado nesse caso é a realidade exposta cruamente, a cena comum, banal e que habilmente dissecada no vídeo mostra a loucura social, o individualismo delirante que na escala atual nos torna cegos e surdos para o mundo.
O vídeo do grupo se chama "Encontro" e é uma cena corriqueira. Cláudio encontra Renata no parque e eles têm um diálogo sobre casa, filhos, casamento, amigos em comum...e esta é a graça, pois é um diálogo moderno e aqui uso moderno no pior sentido da palavra. Renata "conversa" com Cláudio seguindo um roteiro de frases clichês e sem ouvir uma só palavra do que Cláudio diz. A graça do vídeo está na proximidade com o real, no absurdo e na frequência de encontros como esse, no desconforto que sentimos ao perceber quantas vezes por dia não somos ouvidos, mas sobretudo na culpa áspera, pois em certa medida somos capazes de agir como Renata.
O que ocorre com Cláudio e Renata é a essência da conversa moderna, o registro filmado do encontro casual e cotidiano lixado de todas as tintas e vernizes.
Nos dias de hoje, é perfeitamente possível e até socialmente aceitável estabelecer um diálogo sem conversar, conversar sem ouvir, ouvir sem prestar atenção, prestar atenção sem considerar ou considerar sem dar importância. Afinal, vamos combinar: não tem nenhuma importância se não é meu, se não sou eu, se não posso vender ou se não posso comprar.
O diálogo moderno consiste basicamente de uma ansiosa alternância de monólogos, dois "eus" seguindo em paralelo. Nesta conversa de mentira onde não há "nós", o importante é apenas o contexto, o tema que irei propor ou aceitar para falar de mim entre aqueles ruídos irritantes, entre as bobagens que meu interlocutor insiste em dizer pensando que estou interessado, enganado talvez pelo meu olhar fixo e pelos meus falsos sinais de atenção.
Assim como o pinguim africano, o elefante asiático e o panda gigante, a arte da conversa está em extinção. Pode desaparecer por completo se não entendermos que o principio do diálogo não é a boca, mas o ouvido. Como disse William Hazlitt no século XIX, "a arte da conversa é a arte de ouvir e ser ouvido".
Um papiro sobre Alquimia de um autor anônimo e datado do século III descreve assim a criação do mundo: "Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo...Quando ele gargalhou, fez-se a luz...Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo e pouco antes da sétima gargalhada, Deus inspira profundamente e então ri tanto que chora e de suas lágrimas nasce a alma".
Seja riso divino ou humano, o humor ainda guarda os seus mistérios.
Satírico ou grotesco, burlesco ou cáustico, o humor desdobrou-se entre nós em tantas faces que Edmund Berger, especialista no assunto, já tinha estabelecido em 1956 pelo menos 80 teorias sobre a natureza e a origem do riso. Por tudo isso não é difícil entender o papel do humor em uma sociedade, mas dentre todas as suas variantes destaco nesta sexta-feira a sua função de denúncia, a reponsabilidade que a graça muitas vezes assume de colocar o dedo no ponto central de nossos problemas e então fazer cócegas. Neste caso, o ponto que o dedo escolhe faz toda a diferença, pois uma piada bem colocada pode provocar uma reflexão que nem o sermão mais inspirado despertaria.
O riso brota sem que percebamos. Nasce de um ponto misterioso da alma, emerge e depois, flutuando ali na consciência, mostra que a origem da graça está no ridículo da realidade. Rimos porque tivemos um encontro com uma verdade coberta por camadas de vernizes sociais e que quando exposta mostra o absurdo de certos gestos e comportamentos. Rimos porque foi a única resposta possível diante de uma dessas loucuras da existência e que até um segundo antes da piada estava habilmente escondida.
É evidente que isso não se aplica a qualquer piada, mas certamente é o que sinto em relação a um vídeo do grupo Porta dos Fundos. Contar aqui o que este sketch mostra não vai estragar a piada pelo simples fato de que não há piada. O engraçado nesse caso é a realidade exposta cruamente, a cena comum, banal e que habilmente dissecada no vídeo mostra a loucura social, o individualismo delirante que na escala atual nos torna cegos e surdos para o mundo.
O vídeo do grupo se chama "Encontro" e é uma cena corriqueira. Cláudio encontra Renata no parque e eles têm um diálogo sobre casa, filhos, casamento, amigos em comum...e esta é a graça, pois é um diálogo moderno e aqui uso moderno no pior sentido da palavra. Renata "conversa" com Cláudio seguindo um roteiro de frases clichês e sem ouvir uma só palavra do que Cláudio diz. A graça do vídeo está na proximidade com o real, no absurdo e na frequência de encontros como esse, no desconforto que sentimos ao perceber quantas vezes por dia não somos ouvidos, mas sobretudo na culpa áspera, pois em certa medida somos capazes de agir como Renata.
O que ocorre com Cláudio e Renata é a essência da conversa moderna, o registro filmado do encontro casual e cotidiano lixado de todas as tintas e vernizes.
Nos dias de hoje, é perfeitamente possível e até socialmente aceitável estabelecer um diálogo sem conversar, conversar sem ouvir, ouvir sem prestar atenção, prestar atenção sem considerar ou considerar sem dar importância. Afinal, vamos combinar: não tem nenhuma importância se não é meu, se não sou eu, se não posso vender ou se não posso comprar.
O diálogo moderno consiste basicamente de uma ansiosa alternância de monólogos, dois "eus" seguindo em paralelo. Nesta conversa de mentira onde não há "nós", o importante é apenas o contexto, o tema que irei propor ou aceitar para falar de mim entre aqueles ruídos irritantes, entre as bobagens que meu interlocutor insiste em dizer pensando que estou interessado, enganado talvez pelo meu olhar fixo e pelos meus falsos sinais de atenção.
Assim como o pinguim africano, o elefante asiático e o panda gigante, a arte da conversa está em extinção. Pode desaparecer por completo se não entendermos que o principio do diálogo não é a boca, mas o ouvido. Como disse William Hazlitt no século XIX, "a arte da conversa é a arte de ouvir e ser ouvido".
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
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