sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Ritual de passagem

O ritual serve para emancipar o indivíduo e preservar a saúde da tribo. E nossa tribo está doente.


(Foto: Ilustração Max Velati)
Por Max Velati*
Nas culturas primitivas, o ritual de passagem da infância para a vida adulta é um evento fundamental tanto para o status do indivíduo a ser emancipado quanto para a saúde social da tribo. Culturas diferentes e geograficamente distantes parecem ter estruturado esta cerimônia a partir de uma crença única: o ritual deve ser perigoso e doloroso para o jovem. Em geral, o evento se organiza em três etapas: separação, transição e reincorporação. Os graus de perigo, dor e sangue variam, mas esses ingredientes estão sempre presentes.

A interpretação mais superficial desta prática é que a tribo precisa ser constituída de homens e mulheres de valor e o ritual serve para testar concretamente o indivíduo em uma situação extrema. Vitorioso na prova - muitas vezes com o corpo marcado para o resto da vida por essa experiência - a criança morre, nasce o adulto e, em muitos casos, recebe na ocasião um novo nome. Vou repetir: a criança morre. A tribo recebe então o adulto que deverá ser tratado como adulto, terá direitos de adulto e deveres de adulto.

A segunda leitura dessa instituição primitiva aceita o ritual como um recurso importante para garantir a saúde da tribo. Uma vez vitorioso no teste, o indivíduo assume como adulto o seu lugar na sociedade e perde o direito de voltar a ser criança, sob pena de ter que repetir o ritual ou ser testado novamente com mais rigor.

As provas extremas de coragem, perseverança e resistência física não existem unicamente para avaliar o membro da tribo, mas para tornar perigoso e doloroso o caminho de volta. A dor e o perigo funcionam como demarcações de uma fronteira social criada para impedir um comportamento que fique transitando sem nenhuma consequência entre a infância e a maturidade.

Há muita sabedoria nesta medida. 

A ausência de uma fronteira bem demarcada entre a infância e a vida adulta produz jovens que se comportam segundo o modelo "Deixem-me em paz, mas cuidem de mim", como tão bem definiu o filósofo Pascal Bruckner no livro "A Tentação da Inocência". Na prática, vemos exemplos corriqueiros desse comportamento em adolescentes que querem (de certa forma exigem) a chave do carro, mais dinheiro ou o direito de ir e vir a qualquer hora. Também exigem roupas lavadas e passadas, geladeira cheia e uma privacidade de eremita. Acreditam que estão isentos de tarefas na casa, tratam os pais com um distanciamento arrogante feito de monossílabos e consideram os amigos da balada a sua verdadeira família.

Como disse antes, o ritual primitivo serve tanto para emancipar o indivíduo quanto para preservar a saúde da tribo e nossa tribo está doente. A doença está registrada em um documento chamado "Estatuto da Juventude", aprovado pelo Senado no dia 16 de abril de 2013. A carta de privilégios é uma cópia do "Estatuto da Criança e do Adolescente" com o corretivo e a caneta empurrando o fim da adolescência para 29 anos. 

Essa iniciativa absurda do Senado me lembra o sujeito que percebe que o carro está com um grave problema nos freios e leva o automóvel para um mecânico preguiçoso. Com muito custo e má vontade o mecânico analisa o problema e conclui que consertar os freios vai dar muito trabalho. Muito mais fácil é aumentar o som da buzina.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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