(Foto: Reprodução) |
Os começos de ano fazem-nos esquecer os sofrimentos e lançam-nos para as experiências futuras desejadas. No entanto, vale pensar em pessoas para as quais a vida não sorri tão facilmente. Os menores iniciados cedo na infração fazem-nos sofrer por causa do caminho encetado..
A relação profunda entre a constituição orgânica e os dados culturais configura os estereótipos que criamos de menino e menina. Os dois extremos do biologismo ou do culturalismo não dão conta de entender os fenômenos sociais. À menina tinha-se reservado o papel da ternura, da delicadeza, dos brinquedos de boneca e casinha, enquanto dos meninos se espera um espírito agressivo, entregue a esportes duros e violentos, roncando petulância e aventuras perigosas.
A cultura reforçava tal imagem e aí tínhamos realmente meninas e meninos bem diversificados. Simone Beauvoir causou espécie quando lançou em seu livro a famosa frase: ser mulher é cultural. Toda afirmação rotunda serve para despertar para o lado esquecido da verdade. E ela desmascarou a imagem de mulher que a cultura ocidental lhe tinha impingido como sua natureza.
As estatísticas sobre a população da FEBEM vêm obrigar-nos a corrigir a ideia das menininhas quietinhas, domésticas, feitas mais de ternura que de agressividade. Lá estão elas ingressando cedo no mundo das infrações legais. A cultura está a modelar-lhes a psicologia e a influenciar-lhes até mesmo o corpo físico com novos comportamentos que até então eram considerados masculinos.
Se as meninas não trazem no seu corpo a incisão da violência, da aventura criminosa, dos instintos agressivos, que acontece na cultura que está a levá-las por esse caminho? Que elementos do ambiente lhes estão configurando um agir violento contra a sua inclinação primeira?
Os pesquisadores apontam como o principal motivo de elas estarem participando do crime o desejo de consumo. Duas palavras mágicas: desejo e consumo numa simbiose explosiva.
O ser humano é um ser-de-desejo. O desejo é o gigantesco hiato entre o infinito que somos e que desejamos e o finito dos bens que se nos oferecem. Em boa aritmética, infinito menos finito igual a infinito. O desejo permanece, portanto, infinito, insaciável, sempre em movimento, tragando e engolindo todos os bens materiais e espirituais, todas as experiências e práticas, deixando o sabor de "quero mais".
Imaginem uma menina entrando na roda-viva de um shopping que lhe desvenda aos olhos infinitos bens de consumo belos, apetitosos, sedutores, que a farão, num toque de mágica, a princesa encantada das fábulas, mas que lhe dorme no fundo do coração. Olha para seu bolso. Onde está o dinheiro para comprar tantas coisas maravilhosas? Daí a um gesto inicial de furto é pequeno passo. Em vez do furto talvez difícil pela fiscalização eletrônica dos shoppings prefira uma pequena trombada nalgum velhinho ou velhinha que leva na bolsa seu dinheiro. Entra lentamente na farândola atraente de aventuras que lhe trazem o resultado visível de propiciar-lhe sempre novos bens de consumo.
Mais fascinantes ainda se fazem essas proezas quando as meninas se metem nalgum bando a fim de melhorar o know-how infrator. É uma cadeia difícil de se romper uma vez que se liga a algum grupo. O destino previsível é a FEBEM ou alguma delegacia que, ao arrepio da lei, alberga menores ou, mais tragicamente, a morte violenta nalgum confronto armado ou num acerto de contas entre os próprios jovens.
O desejo sempre continuará infinito nas buscas. Não há remédio extrínseco a ele. O único caminho é a educação. Esta supõe que se trabalhe junto e com os jovens o significado mais profundo dessa estrutura humana. O idealismo, a religião, grandes projetos e bandeiras humanas têm sido as vias que a pedagogia conhece de longa data. Esquecê-la é entregar os jovens à máquina devorante da sedução de um consumismo sem limite.
*É teólogo jesuíta. Licenciado em Teologia em Frankfurt (Alemanha) e doutorado pela Universidade Gregoriana (Roma). É professor da FAJE (Faculdades Jesuítas), em Belo Horizonte. Publicou mais de noventa livros entre os de autoria própria (36) e em colaboração (56), e centenas de artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Internacionalmente reconhecido como um dos teólogos da Libertação.
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