Padre Geovane
Saraiva*
Ser pobre
e despojado é procurar imitar o Salvador da humanidade, o Senhor Jesus Cristo,
que nada teve, a não ser uma única túnica; ele que foi objeto de escárnio da
parte dos que o assassinaram. As raposas têm tocas, as aves do céu, ninhos; mas
o Filho do Homem não tem onde inclinar sua cabeça (Mt 8, 22). Francisco de
Assis e o Irmão Universal Charles de Foucauld amaram em profundidade a Senhora
Pobreza, que Cristo a inaugurou, ao nascer numa estribaria e, ao morrer
semelhante a um malfeitor, sedento, desfigurado e despido.
O Papa
João XXIII, "Il Papa buono", como era conhecido pelo povo Italiano,
teve na sua grande bondade, a bela e maravilhosa inspiração de iniciar uma nova
era na Igreja, era de uma Igreja mais povo de Deus, mais servidora, despojada e
pobre, que se adaptasse às necessidades do nosso tempo e fortalecesse tudo
aquilo que pudesse contribuir para chamar todos ao seio da Igreja. Tudo isso se
deu na Igreja com a convocação e realização do Concílio Vaticano II (1962
-1965).
Palácio
do bispo - sede da Prefeitura
Municipal de Fortaleza
|
No Ceará tivemos a
sorte de contar com Dom José de Medeiros Delgado (Pombal-PB, 28 de julho de
1905—Recife, 9 de março de 1988) , um paraibano de personalidade e formação sólida, de uma
cultura invejável, que compreendeu e assimilou o Concílio Vaticano II em toda
sua plenitude, sonhando com uma Igreja rejuvenescida, renovada, o aggiornamento sonhado por João XXIII. O
mais exigente e a grande arte para Dom Delgado foi viver essa transição, fazer
acontecer e levar o clero e o povo a uma compreensão do mundo, com suas
exigências e que todos tinham a missão de construir a sua própria história.
Neste sentido, seu gesto de pastor foi segundo o coração do Pai (cf. Jr 3, 15),
grandioso e extraordinário.
Dom
Helder Câmara, Dom José Mota Albuquerque, Dom José Maria Pires, Dom Antônio
Batista Fragoso, Dom Fernando Gomes e Dom José de Medeiros Delgado e outros
mais contavam entre signatários desse pacto salutar, que foi consequente,
influenciando e fazendo florescer tantas coisas belas e maravilhosas na nossa
Igreja do Brasil, da América Latina e do mundo inteiro.
Comprometeram-se
os nossos queridos pastores em levar uma vida de pobreza, de rejeitar todos os
símbolos ou privilégios do poder, de colocar os pobres no centro da sua ação
evangelizadora e ministério pastoral. Outra coisa presente no pacto das
catacumbas foi princípio da colegialidade e corresponsabilidade na Igreja povo
de Deus, e ainda, a abertura para o mundo que se transformava e a acolhida
solidária fraterna [...].
Dom
Helder procurou viver rigorosamente a mística do pacto das catacumbas,
despojando-se de tudo que pudesse transparecer uma Igreja com estrutura pesada
e burguesa, abraçando a simplicidade e a pobreza, indo ao encontro da profecia,
sendo a voz dos pobres e dos que não podiam falar, nos duros anos do arbítrio –
a voz dos "sem voz e sem vez". O compromisso do pastor dos
empobrecidos foi um insulto para muitos, mesmo dentro da própria hierarquia da
Igreja, mas não para aquele que tinha na mente e no coração a colegialidade e a
corresponsabilidade, o então Arcebispo de Fortaleza, Dom José de Medeiros
Delgado.
Esse
grande bispo foi corajoso e não teve medo de colocar seu cargo de Arcebispo de
Fortaleza, bem como sua dignidade, sabedoria e boa vontade a serviço dos
sofredores de seu tempo, sendo fiel ao pacto firmado, concretamente
solidarizando-se com Dom Helder e outros irmãos perseguidos. Dom Delgado foi um
pastor extremamente aberto e coerente com as decisões conciliares e assim se
pronunciou: “A imprensa brasileira vem desencadeando uma intensa campanha
contra a pessoa de Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife” [...] (cf.
O Peregrino da Paz, Pg. 73).
Dom
Delgado foi o terceiro Arcebispo de Fortaleza, ficou à frente de nossa Igreja
por 10 anos, de 1963 a 1973. Não foi fácil para ele assumir o período da
transição, mas como um homem aberta às novidades de seu tempo e, ao mesmo
tempo, com sua profunda sensibilidade humanitário, sonhava e desejava
obstinadamente ver acontecer e funcionar as resoluções de uma Igreja que se
abria para o mundo e se voltava para criatura humana, imagem e semelhança de
Deus (Gn, 1,26), uma Igreja comunhão e participação.
Dentro da
visão de uma Igreja do Vaticano II, querendo ver suas normas aplicadas, a
partir do pacto das catacumbas, despojada, pobre e servidora, longe dos
símbolos e dos privilégios do poder, Dom Delgado foi corajoso e profético, ao
desfazer-se do patrimônio mais histórico e expressivo da cidade de Fortaleza –
o "Palácio do Bispo", residência oficial do senhor arcebispo. Há quem
diga que a venda desse patrimônio, até então pertença da Igreja do Ceará,
custou-lhe sua renúncia, antes de completar 68 anos de idade.
Dom
Delgado ao despedir-se da Arquidiocese de Fortaleza em 1973, com o coração
compungido, expressou-se assim: "Agora, Senhor, podes deixar teu servo
partir em paz, segundo a tua palavra; porque meus olhos viram a tua salvação,
que preparaste diante de todos os povos, luz para iluminar as nações e glória
de teu povo, Israel" (Lc 2, 29-32), citando o velho Simeão, sumamente
alegre e feliz. Diante do acima exposto e das críticas que sempre escutei a seu
respeito, quero afirmar, sem nenhuma dúvida, que esse homem de Deus,
corajosamente fez que o que tinha que ser feito e foi um grande pastor, um
bispo incompreendido.
*Sacerdote
da Arquidiocese de Fortaleza, escritor, articulista, blogueiro, membro da
Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza, da Academia de Letras dos
Municípios do Estado Ceará (ALMECE) e Vice-Presidente da Previdência Sacerdotal
- Pároco de Santo Afonso - geovanesaraiva@gmail.com
Autor dos livros:
“O peregrino da Paz”
e “Nascido Para as Coisas Maiores” (centenário de Dom Helder Câmara);
“A Ternura de um
Pastor” - 2ª Edição (homenagem ao Cardeal Lorscheider);
“A Esperança Tem
Nome” (espiritualidade e compromisso);
"Dom Helder:
sonhos e utopias" (o pastor dos empobrecidos);
"25 Anos sobre
Águas Sagradas (coletânea de artigos e fotos).
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