terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O progresso e a diminuição da pobreza



Não há progresso de uma sociedade quando se têm conhecimento de crianças dormindo nas ruas. (Foto: Reprodução)
Marcus Eduardo de Oliveira

A realidade social e econômica não mente: não há progresso de uma sociedade quando se têm conhecimento de crianças dormindo nas ruas de qualquer cidade, em qualquer lugar do mundo. Não há avanço dos sistemas econômicos quando esses não conseguem, apesar de toda a engenharia técnico-acadêmica, eliminar as gritantes diferenças entre àqueles que comem dos que passam fome. 

As economias modernas, da forma como estão desenhadas, contribuem sobremaneira para separar cada vez mais dois grupos sociais: os privilegiados dos necessitados. 

Como isso acontece? Para obter essa resposta, é necessário ter em conta que a regência econômica ditada pelos países desenvolvidos e “entendida” como “receita” pelos mercados emergentes não se dá, primeiramente, para atender as necessidades das pessoas, mas sim pela capacidade de compra (poder aquisitivo) de alguns. 

O que esse modelo econômico aí exposto e largamente difundido faz é privilegiar a força de compra do cartão de crédito. Conquanto, quando se rege a economia apenas por essa ótica – nesse caso, a do poder de compra – aprofundam-se as desigualdades à medida que milhões de pessoas vão sendo excluídas da economia de mercado. 

Para a “economia mercadológica” as pessoas apenas têm valor quando podem consumir. O capital, por esse prisma, só reconhece a demanda efetiva, isto é, o poder de compra. 

Para a economia de mercado pouco importa se há 1,2 bilhão de pessoas sem acesso à água potável. Vale mais saber que alguns chegam a gastar numa garrafinha de 750 mililitros de água da marca Bling(**)- a água mais cara do mundo - a importância de 70 dólares. 

Da mesma forma, são muitos os que não se importam em gastar quatro dólares por dia num simples cappuccino, quando 2,5 bilhões de pessoas não ganha 1 (um) dólar por dia. Superar essas diferenças não é fácil. Essa tarefa consiste, basicamente, em buscar alternativas para pôr fim a maior de todas as perversidades: a fome que atinge 1 bilhão de pessoas e que ceifa 40 mil vidas todos os anos, em pontos diferentes da Terra. 

Afinal, são os Homens os únicos responsáveis pela construção das sociedades que não param de apresentar mudanças. E mudanças cada vez mais significativas. 

Em especial no que toca ao uso do cabedal teórico da economia, uma situação específica precisa ser definida, uma vez que um falso argumento persiste desde o início das obras que marcam o nascimento da ciência econômica: não será aumentando a riqueza daqueles que já auferem elevados ganhos que se conseguirá diminuir a pobreza daqueles que carecem de ajuda. 

É necessário ter ciência que se existe pobreza, é porque existe desigualdade. Logo, a desigualdade é geradora de pobreza. Todavia, há ainda que se pensar a prosperidade econômica por outras vias. Prosperar economicamente significa se relacionar de maneira mais abrangente ao uso das oportunidades.

Grosso modo, isso tem a ver com a ideia defendida por Amartya Sem que afirma solidamente que somente ocorre progresso quando se aumentam os “graus de liberdade”, ou seja, quando surge “a possibilidade de cada pessoa em desenvolver todas as suas potencialidades”.

Em outras palavras, essa premissa ressalta que não se pode pensar de forma antecipada nos caminhos que conduzem ao aumento da riqueza, se antes persistirem os modos de políticas públicas que ignoram por completo as possibilidades (oportunidades) de se buscar a redução dos índices vexatórios de pobreza em escala mundial. 

Antes disso, é muito importante identificar a raiz dos problemas; principalmente em procurar saber quantos são, aonde e como estão vivendo esse contingente que necessita de ajuda. A pergunta que salta disso então é a seguinte: quantos são esses pobres pelos critérios metodológicos apontados pelos estudos da Organização das Nações Unidas – ONU?

Quantos são os pobres na América Latina?

De acordo com relatório divulgado pelo ONU-Habitat (Programa de Assentamentos Humanos, da ONU – dados de 2009) o Brasil é o país mais desigual da América Latina, onde os 10% mais ricos concentram 50,6% da renda. 

Na outra ponta, os 10% mais pobres ficam com apenas 0,8% da riqueza brasileira. O problema da má distribuição de renda afeta a América Latina como um todo, conclui o relatório. 

Ainda de acordo com esse documento, os 20% de latino-americanos mais ricos concentram 56,9% da riqueza da região. Os 20% mais pobres, por sua vez, recebem apenas 3,5% da renda, o que faz da América Latina a região mais desigual do mundo.

O México é o segundo país mais desigual da América Latina, já que os 10% mais ricos da população recebem 42,2% da renda, enquanto os 10% mais pobres ficam com apenas 1,3%. Na Argentina, situada em terceiro lugar, 41,7% da renda está concentrada nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto os 10% mais pobres têm apenas 1,1%. A Venezuela é o quarto país mais desigual da região, já que os 10% mais ricos têm 36,8% da renda e os 30% mais ricos controlam 65,1% dos recursos, enquanto os 10% mais pobres sobrevivem com apenas 0,9% da riqueza.

No caso da Colômbia, 49,1% da renda do país vai parar no bolso dos 10% mais ricos, contra 0,9% que fica do lado dos mais pobres. No Chile, 42,5% da renda local está concentrada nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto 1,5% dos recursos vão para os mais pobres. 

Os países menos desiguais da região são Nicarágua, Panamá e Paraguai. Mesmo assim, nos três, a disparidade entre ricos e pobres continua abissal, já que os 10% mais ricos consomem mais de 40% dos recursos. Também consta no referido relatório que a urbanização não contribuiu para diminuir a pobreza na América Latina, já que o número de pessoas na miséria aumentou muito nas últimas décadas, basicamente a partir de 1970. 

Justamente em 1970, havia 41 milhões de pobres nas cidades da região da América Latina - 25% da população de mais de 40 anos passados. Em 2007, a pobreza aumentou em 4%, considerando os dados de 1970: os pobres em áreas urbanas eram 127 milhões, portanto, 29% da população urbana.

No entanto, o ONU-Habitat alertou no relatório que "é nas cidades menores e, certamente, nas áreas rurais da América Latina, onde a população é mais pobre". Assim, a pobreza rural no Brasil alcança 50,1% da população; na Colômbia, 50,5%; no México, 40,1%; e no Peru, 69,3%. A grande exceção é o Chile, com um índice de pobreza rural de 12,3%, número inferior inclusive ao das zonas urbanas.

Um pouco mais de números que mostram a desigualdade: dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) mostram que as taxas de mortalidade de bebês e crianças até cinco anos caíram em todo o mundo, mas o progresso foi muito desigual. Quase 11 milhões de crianças ao redor do mundo ainda morrem todos os anos antes de completar cinco anos. A maioria dessas mortes é devida as doenças evitáveis ou tratáveis: doenças respiratórias, diarreia, sarampo e malária.

Todos os dias, em pleno século XXI, 6,8 mil pessoas são infectadas pelo vírus HIV e 5,7 mil morrem em consequência da AIDS - a maioria por falta de prevenção e tratamento. No entanto, os países pobres pagam a cada dia o equivalente a US$ 100 milhões em serviço da dívida para os países ricos.

Uma vez especificado onde estão e quantos são os pobres da região latino-americana, cabe retomar a um ponto específico da ciência econômica.  Há um conceito dominante nas ciências econômicas de que riqueza e pobreza devam ser medidas pelo mesmo padrão, ou seja: o produto interno bruto (PIB) e sua consequente renda per capita. 

É fundamental que se tenha a lucidez conceitual para verificar que crescimento econômico (elevação do PIB) não significa queda da pobreza, até mesmo porque o PIB, como forma de medir riqueza, é um tremendo ledo engano. 

Crescimento da economia (elevação do produto) não representa melhora na qualidade de vida das pessoas. É certo, no entanto, que não se acaba com a pobreza crônica gerando apenas empregos e fazendo com que o produto interno se expanda. 

A existência da pobreza, entendida nos termos da depreciação de vidas humanas, se acaba, por exemplo, quando se melhora substancialmente os sistemas de saúde pública. O nível de pobreza se reduz sensivelmente quando se põe qualidade na educação para oferecer, posteriormente, educação com qualidade. 

Por fim, índices de pobreza (tanto a crônica como a relativa) se reduzem melhorando as condições de higiene e alimentando melhor os mais pobres; portanto, reduzir os índices de pobreza passa, antes, por proporcionar aos mais necessitados as necessárias condições básicas que conduz ao bem-estar social. 

Decorre daí as chamadas “oportunidades” que tanto clama Amartya Sen. Sem as oportunidades desses acessos (à educação com qualidade, à um sistema de saúde pública decente e ao acesso às condições de higiene) não será possível avançar em termos de melhoria pessoal.

Dito isso, cabe agora afirmar que o padrão de crescimento econômico das sociedades modernas não pode ser praticado nos termos que ora temos presenciado, ou seja, sob uma plataforma socialmente perversa, recheada de falta de “oportunidades” e limitadas a uma minoria que dispõe de condições financeiras. 

Diz Amartya Sem que “Não se deve olhar o progresso de uma economia verificando o aumento da riqueza dos que já são ricos, mas na diminuição da pobreza daqueles que são muito pobres”. Uma economia para funcionar a contento e, essencialmente para melhorar a vida das pessoas carentes – deve se preocupar em diminuir a pobreza, em lugar de aumentar antes a riqueza. Só cabe aceitar uma engenharia econômica em favor do aumento da riqueza quando todos os níveis de pobreza estiverem solapados. 

Antes que isso aconteça, privilegiar o acúmulo de riqueza é fazer pouco caso para com a vida dos mais carentes. É criar dessemelhança. 

(**) A Bling H2O é considerada a água mais cara e exclusiva do mundo. A marca foi criada por um famoso roteirista e produtor de Hollywood chamado Kevin G. Boyd. Sua ideia é que a exclusividade pode se manifestar também por uma simples garrafa de água que se leva à mão. Celebridades como a cantora Mariah Carey, a deslumbrada Paris Hilton e o jogador de basquete, Shaquille O´Neal, são as estrelas da campanha de promoção da Bling H2O que também patrocinou eventos de grande importância mediática como os prêmios MTV ou os prêmios Emmy.
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor de economia da FAC-FITO e do UNIFIEO, em São Paulo. Contato: prof.marcuseduardo@bol.com.br

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