Um Brasil mais duro e sem ternura: sinais do desespero e do desprezo da população.
Por David Paiva*
Tudo que é público merece desprezo. Essa é uma crença em vigor há cinco séculos neste condomínio de latifúndios chamado Brasil. Das simples calçadas até o vetusto sistema que zela pela lei e a ordem, passando pelo transporte coletivo e pelos serviços de saúde fornecidos pelo Estado, o bem público é apenas... "do povão". Comecemos pelos passeios, que fazem parte da rua. Ali andam livremente, como em ambiente coletivo, tanto pessoas que caminham com as próprias pernas como aquelas que dependem de uma cadeira de rodas. Portanto, para todos os efeitos, o passeio, como a praça e a rua, é de uso comum a todos. Em resumo, é público.
Mas o passeio é obra privada, a cargo do dono do imóvel correspondente. O proprietário é como se fosse também proprietário da calçada, e a faz como bem entende: por exemplo, metade ajardinada impedindo a passagem da cadeira de rodas, ou obstruída por arbustos e espinhos, ou ainda revestida de ardósia lisa que sob a chuva é puro sabão. Ao criar um regulamento básico para esse exibicionismo, a Prefeitura exige a adaptação – quando exige – em ritmo a ser medido em séculos.
A calçada é a metáfora do Estado brasileiro: Coisa Pública tratada como Coisa Privada. A calçada só é conveniente a quem a constrói, assim como o Estado só funciona para quem o domina e faz uso dele, ou seja, para os eternos condôminos. É o nosso velho e intocável Estado patrimonialista – o que não é apenas uma denúncia erudita que brotou em textos fundamentaisde Sérgio Buarque de Holanda e de Raymundo Faoro. É hoje uma realidade posta em cheque. A Coisa Pública (ou seja, os bens públicos)usada e abusada como patrimônio privado está na raiz, entre outros fenômenos, da violência. Este é um país cuja população começa – por enquanto, os mais exaltados e menos compromissados, mas apenas por enquanto – a perceber que não tem motivos para respeitar esse Estado que não a respeita. Por sua vez, o Estado, que sempre desprezou a Coisa Pública, negligencia as instituições destinadas ao uso da força, exatamente como negligencia escolas, hospitais, calçadas e transporte coletivo.
Num moderno Estado organizado, o uso da força é exclusivo do poder público. A população brasileira, porém, dá mostras de cansaço. Faz quinze anos que um marginal, sobrevivente, ainda criança, de uma chacina, sequestrou um ônibus urbano no Rio de Janeiro. Duas pessoas morreram e o presidente da República compareceuà TV com palavras que prometiam: "Passamos de todos os limites e ninguém aguenta mais". Pois o fato é que continuamos aguentando até hoje. A violência não muda, nem o Estado aprende as lições; assim, como escreveu Juan Arias em El País, surge "um Brasil mais duro e sem ternura". Enquanto o condomínio desprezar a Coisa Pública e for incapaz de garantirdesde simples passeios decentes e públicos até a prática geral e irrestrita de respeito a tudo que é destinado à coletividade, receberá em troca, em doses cada vez maiores e mais perigosas, os sinais do desespero e do desprezo da população.
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é escritor.
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