Na velhice, se eles chegarem lá, as lembranças estarão na fria letra de plástico do computador.
Por Max Velati*
Temo por uma geração que anda depressa demais e não sabe amarrar os sapatos.
De tempos em tempos criamos rótulos, categorias e agrupamos pessoas sob definições falsamente exatas, só para não ter que lidar com a imprecisão e o caos da realidade. Um rótulo que está na moda é Geração Z.
Não há de fato um consenso sobre quando começa esta geração e o debate está entre 1991 e 1995. Estes poucos anos de diferença não alteram o fato de que, no aspecto da tecnologia, esses jovens tomam por certo, real e garantido aquilo que nós, os grisalhos, considerávamos possível apenas nos delírios de ficção científica. Com superpoderes tecnológico tão disponíveis, esses meninos e meninas crescem tão rápido, em um mundo tão rápido, que não têm tempo para avaliar as contradições que estão herdando ou construindo, mesmo se forem contradições importantes.
E algumas são.
Contradizendo o acesso fácil à montanhas de informações, hoje temos furos e rachaduras graves na educação. Temos tablets, celulares, redes globais e canais de conexão, é verdade, mas temos cada vez menos a dizer. Mais grave: leia um texto típico de adolescente e verá que temos cada vez menos recursos para a dizer o que queremos, do modo que queremos ou precisamos. Com a fala e o texto definhando, o que nos espera no futuro próximo é a morte solene das vogais e, por fim, tudo ficará restrito ao grunhido e ao pictograma.
Desafiando por contraste o luxo e a riqueza de poucos privilegiados, temos povos sofrendo por falta de água e luz. Para cada celular inteligente, para cada TV equipada com canais de satélite, temos aldeias e povoados sem meios eficientes de comunicação; milhares e milhares de almas que não chegaram a receber sequer os benefícios do velho aparelho de fax.
Os índices de criminalidade e violência são mais do que assustadores no mundo real. No mundo dos jogos de computador a morte e a violência também existem, mas são remediados com um clique do mouse. Tiro, decapitações e explosões são desenhados para o puro divertimento e para brincar o jogador conta com um número infinito de vidas. Não há repulsa, culpa ou remorso porque afinal, todo aquele sangue é de mentirinha, feito apenas de pixels.
O que me espanta não é apenas a violência desenhada para servir como passatempo, mas justamente o número de horas empregados nisso por jovens que vivem como se tivessem direito a um número infinito de horas no mundo real. Seria bom se refletissem que um passatempo faz passar um tempo que não volta, um tempo que necessariamente e infalivelmente vai acabar sem que se possa saber quando. Pela mesma razão, eu me espanto quando vejo que preferem a comunicação fria dos teclados e das telas em lugar do olho no olho e do aperto de mão. Preferem o conforto da cadeira a ter lembranças reais; trocam com prazer o toque humano pela fria letra de plástico. Na velhice, quando chegarem lá, as memórias estarão apenas no computador.
Garanto a você que não se trata aqui de saudosismo, de lamúria, de um espasmo nostálgico tão típico da minha turma, aliás, um grupo que nos EUA recebeu o rótulo de Geração Jones. Não estou dedilhando o teclado como um músico que teima em escolher as notas mais melancólicas do piano. Não, a coluna de hoje não é um blues. Estou apenas registrando o meu espanto ao perceber que aspectos essenciais da vida podem mudar muito rapidamente, no curtíssimo espaço de algumas décadas. Um exemplo disso é que, quando eu era criança, um dos ritos de passagem marcando claramente o crescimento era o ato de amarrar os próprios sapatos. Havia nisso um desafio real de raciocínio e um respeito público quando o laço estava pronto, com as pontas bem justas e as orelhas do coelho perfeitamente simétricas. Os adultos se entreolhavam e sorriam porque sabiam que muito da vida consiste em saber resolver sozinho problemas práticos e esta vitória simbolizava um bom começo.
Esta semana, li na imprensa que as crianças estão aprendendo a navegar na Internet antes mesmo de aprender a dar nó nos cadarços.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário