segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O grito da Natureza

As agressões que ela é forçada a presenciar, em seus cenários mais esplendorosos.

Por Evaldo D´Assumpção*

Preguiçosamente, o sol deixou a linha do horizonte, expulsando a escuridão que teimava permanecer dormitando sobre aquele lado da Terra. A lua, mais esperta, já havia acelerado seus passos e já se deitara do outro lado do mundo, onde a noite já se fazia dominante.

Naquele dia, a mãe Natureza resolveu voltar sua atenção para uma pequena praia na orla capixaba. Já há tempos, ela vinha se preocupando com a deterioração daquele bucólico balneário, há não muito tempo orgulhoso de ter sido escolhido como candidato à Bandeira Azul. Esse galardão, de âmbito internacional, só é fornecido às praias que cumpram rigorosas regras de limpeza, civilidade e permanente conservação de uma estrutura modelo para receber seus visitantes. Contemplando o panorama atual dessa praia, a mãe Natureza percebeu que, daquela antiga escolha, só restavam algumas placas promocionais carcomidas e alguma empresas comerciais explorando o nome que daria a Castelhanos um padrão internacional de qualidade. 

Juntamente com o sol nascente, que ia lumiando as paragens castelhanas, a mãe Natureza foi descobrindo coisas que lhe chocaram e que depois me contou.

Na orla, onde a restinga raleava, a ponto de quase já não possuir as plantas herbáceas que lhe são características, cercas com alguns mourões bastante comidos pelos cupins teimavam em segurar os arames que outrora formara uma cerca para proteger aquele espaço. Quase todos eles, corroídos pela maresia, já estavam arrebentados, servindo apenas para ferir com suas pontas perfurantes as crianças incautas que chegassem muito próximo deles. 

Comprometendo ainda mais a sua agonizante existência, bois e vacas pastavam livremente em seu território, amassando com suas pesadas patas as poucas vegetações rasteiras que teimavam em se alastrar por aquele solo inóspito. E o pior: a mãe Natureza ouviu comentários de que aquele gado pertencia exatamente a um funcionário da Secretaria do Meio Ambiente, a quem caberia zelar pela integridade daquela biocenose. Tal funcionário, talvez valendo-se do seu cargo e da impunidade que hoje é apanágio da cultura sócio-política brasileira, engordava seus bois, vacas e bezerros, no pasto gratuito daquele terreno devoluto. 

Deixando a restinga, a mãe Natureza foi passear pela praia, outrora bucólica e tranquila. E lá encontrou bando de cães, alguns vadios, outros com seus insensatos donos, zanzando pela areia em lúdicas correrias e ruidosos latidos. Vez ou outra, interrompendo suas traquinices para defecar ou urinar na areia, deixando suas excrecências onde, daí a pouco, inocentes e desprotegidas crianças passariam, colocando sua pele delgada e permeável em contato direto com aqueles dejetos repletos de micróbios. Certos cinófilos sempre alegam que seus maravilhosos totós são vacinados e não possuem doença alguma. Fingem ou ignoram que todos os animais, inclusive o mais agressivo e predador geral que é o homem, por mais saudáveis que se apresentem são reservatórios de milhões de vírus e bactérias, todas elas potencialmente provocadoras de doenças quando encontram um organismo com menos defesa. 

Outros cinófilos defendem o livre ir e vir de seus "pets" (detestável anglicismo), alegando que colhem suas fezes com os saquinhos plásticos que carregam, evitando a contaminação do solo. E a mãe Natureza perguntou-se a si mesma: "Será que eles chupam também a urina – que é cheia de microrganismos patogênicos – que os totós espalham pela areia e nos bancos onde idosos virão assentar-se, no justo descanso de uma vida longa e laboriosa? Saindo depois com o famoso bicho geográfico (Larva migrans cutânea) que vive no intestino de cães e gatos, para recordar-lhe, por um bom tempo seu descanso na praia?..."

E a mãe Natureza ainda foi surpreendida por um cachorro perseguindo uma criança, ameaçando mordê-la e feri-la seriamente, e até mesmo contaminá-la com a raiva (hidrofobia) mortal, só contido porque seu dono deixou a cerveja de lado e chamou sua fera para o seu lado. E viu ainda um totó sentado sobre a mesa do restaurante que se preparava para receber seus comensais, inocentes vítimas da irresponsabilidade, não do cão, mas do dono do restaurante, que acha lindo preservar toda a liberdade dos doces animaizinhos...

Muito mais coisas viu a mãe Natureza, que não continuo descrevendo por já ter alongado-me em demasia. E também porque, depois de ver o que viu, a mãe Natureza deu um enorme grito de repulsa, conclamando chuvas torrenciais, raios e trovões para lavar e levar a violência que o animal homem está cometendo, com a omissão, ou até quem sabe, conivência das autoridades (ir)responsáveis.  Depois, fiquei pensando, não reclamem das consequências que advirão de tanto abuso e insensibilidade para com as coisas belas que o Criador nos legou para usufruir e zelar. Não só na orla capixaba, mas em todo o nosso sofrido planeta Terra.
* Evaldo D´Assumpção é médico e escritor.

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