segunda-feira, 14 de abril de 2014

A serra dos miseráveis

Num cárcere de Serra Leoa vive-se o agora porque o passado foi esquecido e o futuro não existe.

Por Marco Lacerda*
As circunstâncias em que Steven Lebbise perdeu a vida, comuns na África em tempos de guerra e de paz, não poderia ter sido mais atroz. O fotógrafo espanhol Fernando Moleres o conhecera pouco antes. Um tribunal havia condenado Steven a três anos de reclusão por roubar duas ovelhas. Tinha 17 anos e já estava havia 18 meses num cárcere de adultos. Havia muitos outros adolescentes presos, sempre os últimos da fila na hora de receber água, sabão e uma porção de arroz como almoço.
A tarefa que consumiu Steven no final de sua vida foi coçar as feridas da sarna. Praticamente todos na prisão tem sarna, uma enfermidade contagiosa da pele que floresce nas celas abarrotadas de homens que, à noite, jazem pelo chão já meio mortos. Mas ninguém estava em situação pior que a de Steve, uma enciclopédia de infecções e doenças às quais seu corpo, privado de vitaminas, deixou de oferecer resistência e sucumbiu.
Fotografias de Steven apareceram estampadas em várias revistas internacionais, mostrando os olhos vidrados comuns nos meninos desnutridos, febris ou abandonados, como os viciados em crack das ruas do Brasil. O jovem, um exemplo perfeito dos detritos humanos produzidos por uma guerra civil que custou 50 mil vidas, não recebeu nenhuma visita nos quase dois anos que permaneceu detido, já que os pais tinham morrido e o resto de sua família tinha se esquecido dele havia muito tempo.
Como cães vadios
Quando retornou a Serra Leoa, depois de uma longa ausência, fotógrafo Fernando Moleres, que no passado tinha sido enfermeiro, foi informado da morte de Steven. “Como um cão vadio”, disse ele numa reportagem que escreveu para o jornal El País. Sobraram muitos outros cães vadios na mesma prisão onde o garoto passara seus últimos dias.
O que mais chamou a atenção de Moleres foi Abdul Sesay: o mesmo olhar doente e vazio, sarna por todo o corpo. Tinha 16 anos, mas parecia 12. Ele também vinha do campo e seus pais morreram, o pai na guerra e a mãe de alguma doença desconhecida. Vivera sozinho nas ruas de Freetown, a capital, desde os nove anos. Serra Leoa é um país de Oliver Twists, órfãos errantes que arrancam a vida com as mãos como o personagem de Dickens nos bairros sinistros da Londres vitoriana.
O policial de plantão na entrada do edifício cinzento da prisão, que os habitantes locais chamam de Pademba Road (nome que em Serra Leoa tem conotações ameaçadoras) pediu a Fernando que entregasse seu celular e o dinheiro que levavam. Eram 11 da manhã e o fotógrafo teve permissão de permanecer dentro do presídio, onde 1307 presos se acotovelavam, até as 4 da tarde. Quando o avistaram e reconheceram centenas de meninos que davam voltas em um grande pátio, gritaram exibindo sorrisos de alegria: “Fernando, Fernando, Fernando Torres”! O sobrenome do fotógrafo não é Torres. Este é o sobrenome do jogador espanhol, Fernando Torres que os presos de Pademba Road (e todos os habitantes de Serra Leoa) conhecem e adoram.
As labaredas de um inferno
Na hora do almoço no setor do presídio em que se encontrava, Abdul Sesay mostrou sua repugnância pela vida no cárcere. “Nem um cachorro comeria isto”, disse apontando para a refeição que o esperava. Mas todos comeram como famintos, com as mãos, meio nus sentados no chão de terra batida do calabouço onde celas pensadas para duas pessoas eram ocupadas por oito. É impressionante a resistência dos africanos, sua capacidade de seguir adiante em condições sub-humanas, sua infinita capacidade de adaptação e tolerância.
Finalmente, Fernando conseguiu estar com Abdul em uma cela maior, com área equivalente a meia quadra de tênis, onde dormiam 60 pessoas. Era miúdo, rosto de menino marcado pela acne, olhos tristes. “Vivia com minha avó na aldeia, mas ela pediu que eu fosse embora, pois não tinha dinheiro para cuidar de mim”. Abdul tinha nove anos. A partir de então, o moleque passou a viver em Freetown, trabalhando no que pintasse, carregando sacos no mercado e dormindo dentro de carros abandonados em cemitérios de automóveis.
Porque estava em Pademba? Alguém lhe dera de presente um rádio roubado e, ao ser parado um dia pela polícia, não teve como se explicar. Enquanto Abdul falava, Fernando enfiava-lhe pílulas na boca, para combater as erupções da sarna que já lhe devorara metade do corpo. Depois de deixar a prisão Fernando encontrou-se com uma advogada que exigiu anonimato, mas explicou muita coisa: “Em Serra Leoa não existe justiça para quem não tem dinheiro”, disse. A corrupção está presente em todo o sistema de um país onde o presidente é católico e o vice, muçulmano.
Fé em Deus
Fernando saiu daquele encontro disposto a libertar Abdul do cativeiro. Aliás, esta era a razão que trouxera Moleres de volta a Serra Leoa. O hotel em que estava hospedado em Freetown foi construído por uma empresa chinesa, uma das muitas que hoje exploram a África praticamente recolonizando-a em busca de matérias-primas que alimentem seu celebrado milagre econômico. Dos cinco canais de TV disponíveis no apartamento de Moleres, dois eram chineses. Nas paredes dos corredores do hotel havia pôsteres de espetaculares edifícios envidraçados e do festival de luz, neon e metal em que Pequim e Xangai foram transformadas. Um insulto à população local a esfregar-lhe na cara sua miséria sem remédio. Um luxo que Steven, Abdul e uma legião de menores encarcerados jamais conheceriam sequer em sonho.
No dia seguinte, Moleres visitou o Tribunal de Justiça de Serra Leoa, um impressionante edifício construído há um século pelos colonizadores ingleses. Foi uma espécie de ensaio para o plano do fotógrafo de arrancar Abdul (e mais tarde todos os menores confinados em Pademba Road) do inferno onde estavam condenados a morrer. Seu plano era convencer dois freqüentadores locais do Tribunal a serem avalistas da fiança que Moleres estava disposto a pagar pela liberdade de Abdul.
Não foram necessários mais que 50 euros para “comprar” a cumplicidade das autoridades necessárias. No dia da audiência, orientado pela advogada anônima, Moleres conseguiu a libertação do garoto. O documento que ele escreveu antes de cruzar as grades de Pademba para a liberdade era um relato sobre sarjeta em que a vida pode se transformar para muitos no mundo. Falava da sensação de injustiça, das doenças, da falta de medicamentos, das mortes na prisão, da imundície das latrinas, dos alimentos e da água contaminados que eram obrigados a ingerir, da impossibilidade de tomar um banho e, apesar de tudo, de sua fé em Deus.
Depois da audiência que se arrastou por horas, Abdul estava livre na rua. Agarrou a mão de Fernando Moleres com as duas mãos, desnudando a fragilidade do menino que ele de fato era. Naquele mesmo dia Abdul acompanhou Moleres ao aeroporto para sua viagem de regresso à Espanha. Durante algum tempo ele acenou para o amigo no avião que avançava para a decolagem. Depois virou-se e começou a percorrer hesitante o seu caminho, machucado por feridas na alma que remédio nenhum poderá cicatrizar, rumo a ... a quê mesmo?
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor-especial do Domtotal. Este relato foi escrito com base em depoimentos do fotógrafo Fernando Moleres.

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