Os temores urbanos freiam o avanço da ética e reforçam a cultura da violência e do horror
Por Neuza Árbocz*
“Já foi falado que os problemas de intolerância estão no coração e na mente das pessoas. Mas eles estão também nas normas e nas leis”, alerta o urbanista Jorge Wilheim. Estamos nas cidades porque queremos conviver. “Quando me sinto seguro? Quando há pessoas nas ruas. Se as ruas estão desertas, sinto medo”, acrescenta, apontando que as cidades são resultado da evolução da barbárie para a civilização.“Precisamos ter cuidado para não fazermos o caminho de volta.”
O urbanista chamou a atenção para a cultura de medo que estamos alimentando, pela qual o espaço público está deixando de ser visto como lugar de socialização e passando a ser sinônimo de perigo: “Fala-se muito em tirar as crianças das ruas, mas não. As crianças deveriam poder brincar em ruas tranquilas, estar mais umas com as outras. Esse convívio é fundamental”.
O crescimento dos cidadãos isolados fisicamente em espaços que os separam de acordo com traços culturais e sociais foi apontado por mais de um participante do encontro como uma causa importante da intolerância e violência entre as pessoas. Até mesmo as escolas públicas, espaços idealizados para diminuir as diferenças, enfrentam problemas de aceitação e convívio.
“As escolas precisam abrir-se para diferentes formas de pensar, partindo do saber de cada um. É importante mostrar de onde vem determinado conhecimento, onde é aplicado, para que serve”, declarou Darlinda Moreira, educadora de Portugal que participou do colóquio. Ela destacou o caso das crianças ciganas que têm uma maneira peculiar de realizar as operações matemáticas. Sua forma de raciocínio não era valorizada nem mesmo aceita, embora fosse correta. Isso é um reflexo da própria intolerância quanto à cultura cigana na Europa.
Em geral, teme-se aquilo que não é conhecido, que é diferente. Como bem demonstrado no caso da pequena cidade de Winston Parva (nome fictício), no sul da Inglaterra, estudada por Norbert Elias e John Scotson, onde os que chegavam de fora eram apelidados de outsiders e vítimas de boataria e maledicências por parte dos já estabelecidos na localidade.
Desconfiança nas instituições
A intolerância à diversidade resulta na ausência de um senso de comunidade, de coletividade. Predispõe a disputas e agressões. Esse cenário se agrava num país como o Brasil, onde falta, inclusive, confiança nas instituições e na Justiça. “A descrença é grande entre os brasileiros. Uma pesquisa feita em 1995 pelo instituto Datafolha mostrou que 75% preferem resolver por conta própria as agressões que sofrem, em vez de recorrer à Justiça”, informou o sociólogo Sérgio Adorno, também convidado do evento.
Num cenário como esse, é difícil desenvolver o sentimento de pertencimento e confiança mútua. Em seu lugar, cresce a insegurança. O próprio mercado imobiliário se aproveita para realizar novos negócios, oferecendo imóveis com muros altos, guaritas e sistemas de proteção. “Dessa forma, a própria arquitetura passa a alimentar a cultura do medo e do isolamento”, analisou Wilheim, lembrando o grande risco de isso gerar reações exageradas e explosivas, como ocorreu com o Grande Medo, durante a Revolução Francesa, fenômeno exposto pelo historiador Georges Lefebvre.
Lefebvre mostrou que quem sente medo está, por sua vez, mais propenso a agredir, antecipando uma suposta “defesa”, mesmo que diante de ameaças imaginárias. Julgando-se envoltas por um ambiente onde não há ética e respeito, as pessoas tendem a abandonar esses valores. “Isso marcou muito a história do Brasil, formada por grupos tão diversos como imigrantes europeus, índios, caboclos, africanos etc. Um ambiente em que o mais importante era conseguir “vencer”, estabelecendo-se numa terra sem fronteiras nem regras; isso era muito mais importante do que construir bons valores educacionais e civis”, comentou o urbanista.
Ele ainda ressaltou que, de acordo com projeções, até 2025 teremos 25 megacidades no mundo, isto é, cidades com mais de 10 milhões de habitantes. Isso significará desafios maiores para um bom convívio. “Temos de lutar por mais pontos de encontros sociais; isto é, mais espaços públicos bons, bem-estruturados e que de fato sejam usados. Sem eles, a convivência se torna problemática. Aprisionados no medo, não construímos as soluções possíveis.”, concluiu Wilheim.
Risco de autoritarismo
Outro grande risco, numa atmosfera de medo, é o surgimento de correntes autoritárias, que acabam contando com apoio para desenvolver-se como solução para as ameaças reais ou imaginárias. Movimentos com o objetivo de trazer a “ordem”, mas planejados por um número reduzido de pessoas, sem uma construção coletiva e participativa. Por eles, cometem-se os próprios atos de abuso e violência que se deseja coibir, como a história já provou.
“Muitas vezes, as ações policiais nas favelas do Rio de Janeiro são marcadas por uma visão que reduz todas as pessoas dali a bandidos. Os moradores têm eletroeletrônicos levados embora, num ‘confisco’ sem fundamento legal, por exemplo. Chegamos ao ponto de, numa destas intervenções, um cachorrinho de raça ter sido arrancado do colo de três criancinhas e levado embora. O filhote tinha sido um presente da patroa da mãe dos meninos, por esta ter cuidado da ninhada.”, exemplificou o historiador Francisco Carlos T. da Silva, também presente no evento, deixando no ar a pergunta sobre como crianças de favela podem confiar num policial depois de ações desse tipo.
Buscar a qualquer preço a ordem e o progresso propalados pela bandeira nacional é construir mais caos e confusão. Solucionar o problema da violência requer cuidados com cada ser humano, desde seu nascimento, para que o prazer de viver em conjunto seja maior no coração de cada um do que o medo e a desconfiança.
"Medo? Por quê?". Veja o vídeo.
*Este artigo de Neuza Árbocz, da Agência Envolverde, foi escrito especialmente para o Instituto Ethos
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