Retratado em filme, Getúlio Vargas é a personalidade mais complexa e influente da História brasileira.
Por David Paiva*
Seis meses antes da transferência da capital de Minas para Belo Horizonte, em 1897, houve uma arruaça na Rua do Rosário, em Ouro Preto. Envolvia três irmãos gaúchos, alunos do Ginásio Mineiro, e estudantes paulistas. Ao fim de um tiroteio, ficou no chão um jovem paulistano, com dois ferimentos de bala. Morreu três dias depois. A vítima tinha sobrenome quatrocentão – Almeida Prado –, e o crime mobilizou figurões de Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul.
Os irmãos gaúchos eram filhos de um general. Os dois mais velhos, Viriato e Protásio, foram inocentados dos tiros fatais, mas uma testemunha acusou o mais novo, de 15 anos e chegado havia pouco a Ouro Preto. Depoimentos da época relatam a extrema frieza desse adolescente, seu raro autocontrole. Por influência política, não houve julgamento e os rapazes do Rio Grande simplesmente voltaram para casa. Lá, o caçula seria mais tarde acusado de outra morte, a de uma índia, perto da estância da família.
O nome desse "guri" era Getúlio Dornelles Vargas. Depois daqueles meses em Ouro Preto, terminados em quase fuga, ele se dedicou a ocupar a posição de personalidade mais complexa da História brasileira, a mais duradoura e influente. Com ele, o país – bem ou mal – mudou radicalmente. Deixou de ser uma república bananeira absoluta (no caso, república cafeeira) para começar a ser um país do século 20, urbanizado, industrializado e inquieto. Às vezes por meios medonhos, como ditadura, perseguições, tortura, extradição de judeus para a Alemanha de Hitler – mas, seja como for, experimentando. A História social e política não é mesmo uma marcha suave e coerente em lugar nenhum. Talvez seja a “marcha da insensatez”, como a definiu a historiadora Barbara W. Tuchman – ou a única possível ao ser humano, insensato por natureza.
O jovem Getúlio liderou a deposição do presidente Washington Luís e da própria República (que se tornou Velha), e no ato seguinte virou ditador por quinze anos; mais tarde, quase septuagenário, voltou ao poder. E foi então que, três anos depois, deu o tiro definitivo da sua vida: além de ser contra o próprio coração, foi contra uma conjunção de forças que fechava o cerco para expulsá-lo do poder. Apontavam-no como centro de um sistema em decomposição, quando o povo o percebia como aliado e protetor.
É da luta final contra o cerco dos inimigos, os dezenove dias decisivos desse homem frio até o final mas convicto do seu papel histórico, que trata o belo filme em cartaz, “Getúlio”. É o drama interior de um líder, consciente de que está a caminho de ser um mito, que decide jogar a última cartada quando já lhe tiraram todas as cartas. E aciona contra os inimigos a arma contra a qual ninguém pode – aquela que o retira da luta e o eleva a mito. Um dos grandes momentos do filme é a expressão parva do principal adversário, Carlos Lacerda, ao saber do suicídio, quando percebe que Getúlio tinha vencido. Alexandre Borges não faz um bom Lacerda, mas, com movimento mínimo e expressão fixa, é econômico e perfeito na cena do frio na espinha diante da derrota. Afonso Arinos, aliado de Lacerda, contou que viu a vitória de Getúlio, que começava a crescer como um caudal, estampada no duro olhar com que os operários de uma construção o encararam, ao sair de casa pela manhã.
Em tempo: o último tiro de Getúlio na verdade foi o primeiro. Segundo a biografia assinda pelo jornalista Lira Neto, depoimento de testemunha do crime de Ouro Preto provou que “o atirador tinha bigode” – enquanto o adolescente era imberbe. Quanto ao assassinato da índia, foi cometido por um homônimo cujos pais eram outros, de acordo com documentos disponíveis.
Confira o trailer de "Getúlio":
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é escritor.
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