sexta-feira, 16 de maio de 2014

Vida mendiga

Livro-reportagem de George Orwell deveria ser leitura obrigatória para estudantes de jornalismo.
Por Carlos Ávila*
“Vi ontem um bicho/na imundície do pátio/catando comida entre os detritos” ­– com estes versos o modernista Manuel Bandeira (1886/1968) inicia um dos seus mais famosos poemas, “O Bicho”, escrito em 1947. O espanto dele é o mesmo dos leitores no final do poema: “O bicho não era um cão/não era um gato/não era um rato.//O bicho, meu Deus, era um homem”. Chocante, um indivíduo fuçando o lixo atrás de alimento!  Infelizmente, esta cena ainda se repete até hoje nas grandes cidades (e na poesia), às vezes, tragicamente: “Um mendigo/ao revirar/uma lata de lixo/arrancou o pino/de uma granada/que decepou seu braço/os estilhaços perfuraram/seu olho esquerdo/e destroçaram seus lábios/e dentes” (“Rotina” – do poeta paulista Régis Bonvicino, escrito na primeira década deste século). A erradicação da pobreza continua um desafio. Os mendigos ainda estão por toda parte.
Nos anos 1920, o jornalista, ensaísta e romancista George Orwell (nascido na Índia em 1903; falecido na Inglaterra em 1950) fez uma opção radical. Trocou um ótimo salário como policial numa das colônias inglesas (a Birmânia) pela precária carreira de escritor. Jovem e desempregado foi viver num hotel barato no Quartier Latin em Paris, onde escreveu romances e contos, sempre rejeitados pelas editoras. Sua grana acabou; ele passou fome e teve que se virar no subemprego, como lavador de pratos (“um dos escravos do mundo moderno”). Explorado e estafado, conseguiu voltar para a Inglaterra onde viveu como mendigo pelas ruas, perambulando de albergue em albergue (em geral, lugares imundos, cheios de bichos e doenças). Sua experiência está registrada no livro “Na pior em Paris e Londres” (traduzido por Pedro Maia Soares e publicado pela Companhia das Letras).
Socialista, Orwell quis “mergulhar no mundo dos oprimidos e ficar ao lado deles na luta contra os tiranos”. Comeu o pão que o diabo amassou. Dizem que os psicanalistas consideram a loucura e a miséria os dois maiores medos humanos. “É muitíssimo curioso o primeiro contato com a pobreza” – afirma o escritor. “A primeira coisa que você descobre é a baixeza peculiar da pobreza, as mudanças que ela impõe, a complicada mesquinhez, o desnudamento de si mesmo”.
É dura a vida nas ruas; o tédio e o desespero dos que mendigam, revirando o lixo atrás de comida. Mas, segundo Orwell, um sentimento pode servir de consolo na pobreza. Ele afirma que todos que ficaram duros já o experimentaram. “É um sentimento de alívio, quase de prazer, de saber que você está, por fim, genuinamente na pior. Tantas vezes você falou sobre entrar pelo cano – e, bem, aqui está o cano, você entrou nele e é capaz de aguentar. Isso elimina um bocado de ansiedade”. Seu impactante (e ainda atual) livro-reportagem deveria ser leitura indispensável nos cursos de jornalismo.
*Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto Sentido e Área de Risco (poesia); Poesia Pensada (crítica) e Bri Bri no canto do parque (infantil). Foi, por quatro anos (1995/98), editor do “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Trabalhou também na Rede Minas de Televisão e foi editor do caderno de cultura do jornal “Hoje em Dia”. Participou de mais de vinte antologias no país e no exterior.

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