quarta-feira, 4 de junho de 2014

Crença na diversidade

O Papa ruma claramente para uma teologia cristã de respeito ao pluralismo religioso. Urge, pois, libertar-nos daquilo a que estávamos presos

A pluralidade das religiões é uma das características marcantes do mundo contemporâneo. Vivemos uma guerra cultural que altera os códigos morais e de costumes que recebemos como herança do passado. São conflitos entre impulsos distintos: o da ortodoxia e o do progresso. Tal fenômeno acontece em todos os sistemas de crença, nas religiões organizadas, culturas tradicionais etc. As transformações culturais estão em toda parte, mas sob formas diferentes. Nas igrejas cristãs, os ortodoxos proclamam a infalibilidade da Bíblia ou do Papa, enquanto os chamados progressistas tentam ordenar mulheres e criar novos rituais. No mundo muçulmano, os ortodoxos apedrejam adúlteros até a morte e exortam as mulheres a cobrir partes do corpo, enquanto os progressistas vivem uma variedade de islamismo mais tolerante.

Recentemente, o juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara de Fazenda Federal do Rio de Janeiro, voltou atrás e reviu trechos da sentença em que havia declarado que candomblé e umbanda não se configuram como religiões, por não possuírem as características essenciais, com um texto base, como a Bíblia, uma estrutura hierárquica e um Deus venerado. No novo texto, sua argumentação foi alterada para “registrar a percepção deste juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões”. A sentença inicial causara revolta em praticantes das religiões afro-brasileiras.

Sinto, pessoalmente, a necessidade de transitar entre formas de pensamento religiosas e seculares, conforme a situação. Sou cristão, mas o tempo todo penso de forma racional e secular. De fato, o plano divino para a humanidade é um só, mas dotado de muitos matizes. Por isso, respeito o pluralismo religioso que reforça a existência de um Deus de amor, que nos conhece intimamente antes mesmo do nosso nascimento. Temos, no entanto, o direito de escolher quais os aspectos de uma religião que devemos aceitar ou rejeitar. Alguns conservadores, mais ortodoxos, admitem que essa moralidade do tipo “misture e use” é muito pior do que nenhuma moralidade. Verificamos, por outro lado, que muitas vezes a ortodoxia gera o que chamamos de fundamentalismo. O Papa Francisco ruma claramente para uma teologia cristã de respeito ao pluralismo religioso. Urge, pois, libertar-nos daquilo a que estávamos presos, transformar o sujeito em objeto, de modo que possamos possuí-lo, e não sermos possuídos por ele. Nós, na grande maioria, não somos filósofos morais e tentamos corajosamente ser um pouco ortodoxos aqui e um pouco progressistas ali, um pouco espiritualistas em determinados momentos e pragmáticos em outros. Portanto, como Frei Betto escreve no capítulo final do livro “O que a vida me ensinou”: “A religião não pode manter-se indiferente a tudo que impede ou ameaça a vida: opressão, exclusão, submissão, discriminação, desqualificação de quem não abraça o mesmo credo.”

Carlos Alberto Rabaça é sociólogo e professor
http://oglobo.globo.com/opiniao/crenca-na-diversidade-12711623

Nenhum comentário:

Postar um comentário